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CURVATURA DA TERRA

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02 setembro 2023

O IMORTAL - CONTO DE MACHADO DE ASSIS (Parte 2 de 2)

 Publicado originalmente em "A ESTAÇÃO" em 1882.

Domínio público.

PARTE 2 de 2.



EDIÇÃO: OBRAS COMPLETAS DE MACHADO DE ASSIS - RELÍQUIAS DE CASA VELHA - 2º VOLUME

W. M. JACKSON INC. EDITÔRES - RIO DE JANEIRO, SÃO PAULO, PÔRTO ALEGRE - 1957.


Segue abaixo o conto na nova ortografia da língua portuguesa que está em vigor desde 01/01/2009.


O IMORTAL - MACHADO DE ASSIS

...

— Por que não cardeal?

Lady Ema fez com que Rui de Leão entrasse daí a pouco na conspiração que deu em resultado a invasão da Inglaterra, a guerra civil, e a morte enfim dos principais cabos da rebelião. Vencida esta, lady Ema não deu por vencida. Ocorreu-lhe então uma idéia espantosa. Rui de Leão inculcava ser o próprio pai do duque de Monmouth, suposto filho natural de Carlos II, e caudilho principal dos rebeldes. A verdade é que eram parecidos como duas gotas d’água. Outra verdade é que lady Ema, por ocasião da guerra civil, tinha o plano secreto de fazer matar o duque, se ele triunfasse, e substituí-lo pelo amante, que assim subiria ao trono de Inglaterra. O pernambucano, escusado é dizê-lo, não soube de semelhante aleivosia, nem lhe daria o seu assentimento. Entrou na rebelião, viu-a perecer ao sangue e no suplício, e tratou de esconder-se. Ema acompanhou-o; e, como a esperança do cetro não lhe saía do coração, passado algum tempo fez correr que o duque não morrera, mas sim um amigo tão parecido com ele, e tão dedicado, que o substituiu no suplício.

— O duque está vivo, e dentro de pouco aparecerá ao nobre povo da Grã-Bretanha, sussurrava ela aos ouvidos.

Quando Rui de Leão efetivamente apareceu, a estupefação foi grande, o entusiasmo reviveu, o amor deu alma a uma causa, que o carrasco supunha ter acabado na Torre de Londres. Donativos, presentes, armas, defensores, tudo veio às mãos do audaz pernambucano, aclamado rei, e rodeado logo de um troço de varões resolutos a morrer pela mesma causa.

— Meu filho — disse ele, século e meio depois, ao médico homeopata —, dependeu de muito pouco não teres nascido príncipe de Gales... Cheguei a dominar cidades e vilas, expedi leis, nomeei ministros, e, ainda assim, resisti a duas ou três sedições militares que pediam a queda dos dous últimos gabinetes. Tenho para mim que as dissensões internas ajudaram as forças legais, e devo-lhes a minha derrota. Ao cabo, não me zanguei com elas; a luta fatigara-me; não minto dizendo que o dia da minha captura foi para mim de alívio. Tinha visto, além da primeira, duas guerras civis, uma dentro da outra, uma cruel, outra ridícula, ambas insensatas. Por outro lado, vivera muito, e uma vez que me não executassem, que me deixassem preso ou me exilassem para os confins da terra, não pedia nada mais aos homens, ao menos durante alguns séculos... Fui preso, julgado e condenado à morte. Dos meus auxiliares não poucos negaram tudo; creio mesmo que um dos principais morreu na Câmara dos Lords. Tamanha ingratidão foi um princípio de suplício. Ema, não; essa nobre senhora não me abandonou; foi presa, condenada, e perdoada; mas não me abandonou. Na véspera de minha execução, veio ter comigo, e passamos juntos as últimas horas. Disse-lhe que não me esquecesse, dei-lhe uma trança de cabelos, pedi-lhe que perdoasse ao carrasco... Ema prorrompeu em soluços; os guardas vieram buscá-la. Ficando só, recapitulei a minha vida, desde Iguaraçu até a Torre de Londres. Estávamos então em 1686; tinha eu oitenta e seis anos, sem parecer mais de quarenta. A aparência era a da eterna juventude; mas o carrasco ia destruí-la num instante. Não valia a pena ter bebido metade do elixir e guardado comigo o misterioso boião, para acabar tragicamente no cepo do cadafalso... Tais foram as minhas idéias naquela noite. De manhã preparei-me para a morte. Veio o padre, vieram os soldados, e o carrasco. Obedeci maquinalmente. Caminhamos todos, subi ao cadafalso, não fiz discurso; inclinei o pescoço sobre o cepo, o carrasco deixou cair a arma, senti uma dor penetrante, uma angústia enorme, como que a parada súbita do coração; mas essa sensação foi tão grande como rápida; no instante seguinte tornara ao estado natural. Tinha no pescoço algum sangue, mas pouco e quase seco. O carrasco recuou, o povo bramiu que me matassem. Inclinaram-me a cabeça, e o carrasco fazendo apelo a todos os seus músculos e princípios, descarregou outro golpe, e maior, se é possível, capaz de abrir-me ao mesmo tempo a sepultura, como já se disse de um valente. A minha sensação foi igual à primeira na intensidade e na brevidade; reergui a cabeça. Nem o magistrado nem o padre consentiram que se desse outro golpe. O povo abalou-se, uns chamaram-me santo, outros diabo, e ambas essas opiniões eram defendidas nas tabernas à força de punho e de aguardente. Diabo ou santo, fui presente aos médicos da corte. Estes ouviram o depoimento do magistrado, do padre, do carrasco, de alguns soldados, e concluíram que, uma vez dado o golpe, os tecidos do pescoço ligavam-se outra vez rapidamente, e assim os mesmos ossos, e não chegavam a explicar um tal fenômeno. Pela minha parte, em vez de contar o caso do elixir, calei-me; preferi aproveitar as vantagens do mistério. Sim, meu filho; não imaginas a impressão de toda a Inglaterra, os bilhetes amorosos que recebi das mais finas duquesas, os versos, as flores, os presentes, as metáforas. Um poeta chamou-me Anteu. Um jovem protestante demonstrou-me que eu era o mesmo Cristo.

CAPÍTULO V

O NARRADOR continuou:

— Já vêem, pelo que lhes contei, que não acabaria hoje nem em toda esta semana, se quisesse referir miudamente a vida inteira de meu pai. Algum dia o farei, mas por escrito, e cuido que a obra dará cinco volumes, sem contar os documentos... — Que documentos? perguntou o tabelião. — Os muitos documentos comprobatórios que possuo, títulos, cartas, traslados de sentenças, de escrituras, cópias de estatísticas... Por exemplo, tenho uma certidão do recenseamento de um certo bairro de Gênova, onde meu pai morreu em 1742; traz o nome dele, com declaração do lugar em que nasceu...

— E com a verdadeira idade? perguntou o coronel.

— Não. Meu pai andou sempre entre os quarenta e os cinqüenta. Chegando aos cinqüenta, cinqüenta e poucos, voltava para trás; — e era-lhe fácil fazer isto, porque não esquentava lugar; vivia cinco, oito, dez, doze anos numa cidade, e passava a outra... Pois tenho muitos documentos que juntarei, entre outros o testamento de lady Ema, que morreu pouco depois da execução gorada de meu pai. Meu pai dizia-me que entre as muitas saudades que a vida lhe ia deixando, lady Ema era das mais fortes e profundas. Nunca viu mulher mais sublime, nem amor mais constante, nem dedicação mais cega. E a morte confirmou a vida, porque o herdeiro de lady Ema foi meu pai. Infelizmente, a herança teve outros reclamantes, e o testamento entrou em processo. Meu pai, não podendo residir em Inglaterra, concordou na proposta de um amigo providencial que veio a Lisboa dizer-lhe que tudo estava perdido; quando muito poderia salvar um restozinho de nada, e ofereceu-lhe por esse direito problemático uns dez mil cruzados. Meu pai aceitouos; mas, tão caipora que o testamento foi aprovado, e a herança passou às mãos do comprador...

— E seu pai ficou pobre...

— Com os dez mil cruzados, e pouco mais que apurou. Teve então idéia de meter-se no negócio de escravos; obteve privilégio, armou um navio, e transportou africanos para o Brasil. Foi a parte da vida que mais lhe custou; mas afinal acostumou-se às tristes obrigações de um navio negreiro. Acostumou-se, e enfarou-se, que era outro fenômeno na vida dele.Enfarava-se dos ofícios. As longas solidões do mar alargaram-lhe o vazio interior. Um dia refletiu, e perguntou a si mesmo, se chegaria a habituar-se tanto à navegação, que tivesse de varrer o oceano, por todos os séculos dos séculos. Criou medo; e compreendeu que o melhor modo de atravessar a eternidade era variá-la...

— Em que ano ia ele?

— Em 1694; fins de 1694.

— Veja só! Tinha então noventa e quatro anos, não era? Naturalmente, moço...

— Tão moço que casou daí a dous anos, na Bahia, com uma bela senhora que...

— Diga.

— Digo, sim; porque ele mesmo me contou a história. Uma senhora que amou a outro. E que outro! Imaginem que meu pai, em 1695, entrou na conquista da famosa república dos Palmares. Bateu-se como um bravo, e perdeu um amigo, um amigo íntimo, crivado de balas, pelado...

— Pelado?

— É verdade; os negros defendiam-se também com água fervendo, e este amigo recebeu um pote cheio; ficou uma chaga. Meu pai contava-me esse episódio com dor, e até com remorso, porque, no meio da refrega, teve de pisar o pobre companheiro; parece até que ele expirou quando meu pai lhe metia as botas na cara...

O tabelião fez uma careta; e o coronel, para disfarçar o horror, perguntou o que tinha a conquista dos Palmares com a mulher que...

— Tem tudo, continuou o médico. Meu pai, ao tempo que via morrer um amigo, salvara a vida de um oficial, recebendo ele mesmo uma flecha no peito. O caso foi assim. Um dos negros, depois de derrubar dous soldados, envergou o arco sobre a pessoa do oficial, que era um rapaz valente e simpático, órfão de pai, tendo deixado a mãe em Olinda... Meu pai compreendeu que a flecha não lhe faria mal a ele, e então, de um salto, interpôs-se. O golpe feriu-o no peito; ele caiu. O oficial, Damião... Damião de tal. Não digo o nome todo, porque ele tem alguns descendentes para as bandas de Minas. Damião basta. Damião passou a noite ao pé da cama de meu pai, agradecido, dedicado, louvando-lhe uma ação tão sublime. E chorava. Não podia suportar a idéia de ver morrer o homem que lhe salvara a vida por um modo tão raro. Meu pai sarou depressa, com pasmo de todos. A pobre mãe do oficial quis beijar-lhe as mãos: — “Basta-me um prêmio, disse ele; a sua amizade e a do seu filho”. O caso encheu de pasmo Olinda inteira. Não se falava em outra cousa; e daí a algumas semanas a admiração pública trabalhava em fazer uma lenda. O sacrifício, como vêem, era nenhum, pois meu pai não podia morrer; mas o povo, que não sabia disso,buscou uma causa ao sacrifício, uma causa tão grande como ele, e descobriu que o Damião devia ser filho de meu pai, e naturalmente filho adúltero. Investigaram o passado da viúva; acharam alguns recantos que se perdiam na obscuridade. O rosto de meu pai entrou a parecer conhecido de alguns; não faltou mesmo quem afirmasse ter ido a uma merenda, vinte anos antes, em casa da viúva, que era então casada, e visto aí meu pai. Todas estas patranhas aborreceram tanto a meu pai, que ele determinou passar à Bahia, onde casou...

— Com a tal senhora?

— Justamente... Casou com D. Helena, bela como o sol, dizia ele. Um ano depois morria em Olinda a viúva, e o Damião vinha à Bahia trazer a meu pai uma madeixa dos cabelos da mãe, e um colar que a moribunda pedia para ser usado pela mulher dele. D. Helena soube do episódio da flecha, e agradeceu a lembrança da morta. Damião quis voltar para Olinda; meu pai disse-lhe que não, que fosse no ano seguinte. Damião ficou. Três meses depois uma paixão desordenada... Meu pai soube da aleivosia de ambos, por um comensal da casa. Quis matá-los; mas o mesmo que os denunciou avisou-os do perigo, e eles puderam evitar a morte. Meu pai voltou o punhal contra si, e enterrou-o no coração.

“Filho, dizia-me ele, contando o episódio; dei seis golpes, cada um dos quais bastava para matar um homem, e não morri.” Desesperado saiu de casa, e atirou-se ao mar. O mar restituiu-o à terra. A morte não podia aceitá-lo: ele pertencia à vida por todos os séculos. Não teve outro recurso mais do que fugir; veio para o Sul, onde alguns anos depois, no princípio do século passado, podemos achá-lo na descoberta das minas. Era um modo de afogar o desespero, que era grande, pois amara muito a mulher, como um louco...

— E ela?

— São contos largos, e não me sobra tempo. Ela veio ao Rio de Janeiro, depois das duas invasões francesas; creio que em 1713. Já então meu pai enriquecera com as minas, e residia na cidade fluminense, benquisto, com idéias até de ser nomeado governador. D. Helena apareceu-lhe, acompanhada da mãe e de um tio. Mãe e tio vieram dizer-lhe que era tempo de acabar com a situação em que meu pai tinha colocado a mulher. A calúnia pesara longamente sobre a vida da pobre senhora. Os cabelos iam-lhe embranquecendo: não era só a idade que chegava, eram principalmente os desgostos, as lágrimas. Mostraram-lhe uma carta escrita pelo comensal denunciante, pedindo perdão a D. Helena da calúnia que lhe levantara e confessando que o fizera levado de uma criminosa paixão. Meu pai era uma boa alma; aceitou a mulher, a sogra e o tio. Os anos fizeram o seu ofício; todos três envelheceram, menos meu pai. Helena ficou com a cabeça toda branca; a mãe e o tio voavam para a decrepitude; e nenhum deles tirava os olhos de meu pai, espreitando as cãs que não vinham, e as rugas ausentes. Um dia meu pai ouviu-lhes dizer que ele devia ter parte com o diabo. Tão forte! E acrescentava o tio: “De que serve o testamento, se temos de ir antes?” Duas semanas depois morria o tio; a sogra acabou pateta, daí a um ano. Restava a mulher, que pouco mais durou.

— O que me parece, aventurou o coronel, é que eles vieram ao cheiro dos cobres...

— Decerto.

— ...e que a tal D. Helena (Deus lhe perdoe!) não estava tão inocente como dizia. É verdade que a carta do denunciante...

— O denunciante foi pago para escrever a carta, explicou o dr. Leão; meu pai soube disso, depois da morte da mulher ao passar pela Bahia... Meia-noite! Vamos dormir; é tarde; amanhã direi o resto.

— Não, não, agora mesmo.

— Mas, senhores... Só se for muito por alto.

— Seja por alto.

O doutor levantou-se e foi espiar a noite, estendendo o braço para fora, e recebendo alguns pingos de chuva na mão. Depois voltou-se e deu com os dous olhando um para o outro, interrogativos. Fez lentamente um cigarro, acendeu-o, e, puxadas umas três fumaças, concluiu a singular história.

CAPÍTULO VI

— MEU PAI deixou pouco depois o Brasil, foi a Lisboa, e dali passou-se à Índia, onde se demorou mais de cinco anos, e de onde voltou a Portugal, com alguns estudos feitos acerca daquela parte do mundo. Deu-lhes a última lima, e fê-los imprimir, tão a tempo, que o governo mandou-o chamar para entregar-lhe o governo de Goa. Um candidato ao cargo, logo que soube do caso, pôs em ação todos os meios possíveis e impossíveis. Empenhos, intrigas, maledicência, tudo lhe servia de arma. Chegou a obter, por dinheiro, que um dos melhores latinistas da península, homem sem escrúpulos, forjasse um texto latino da obra de meu pai, e o atribuísse a um frade agostinho, morto em Adém. E a tacha de plagiário acabou de eliminar meu pai, que perdeu o governo de Goa, o qual passou às mãos do outro; perdendo também, o que é mais, toda a consideração pessoal. Ele escreveu uma longa justificação, mandou cartas para a Índia, cujas respostas não esperou, porque no meio desses trabalhos aborreceu-se tanto, que entendeu melhor deixar tudo, e sair de Lisboa. Esta geração passa, disse ele, e eu fico. Voltarei cá daqui a um século, ou dois.

— Veja isto, interrompeu o tabelião, parece cousa de caçoada! Voltar daí a um século — ou dois, como se fosse um ou dous meses. Que diz, “seu” coronel?

— Ah! eu quisera ser esse homem! É verdade que ele não voltou um século depois...

Ou voltou?

— Ouça-me. Saiu dali para Madri, onde esteve de amores com duas fidalgas, uma delas viúva e bonita como o sol, a outra casada, menos bela, porém amorosa e terna como uma pomba-rola. O marido desta chegou a descobrir o caso, e não quis bater-se com meu pai, que não era nobre; mas a paixão do ciúme e da honra levou esse homem ofendido à prática de uma aleivosia, igual à outra: mandou assassinar meu pai; os esbirros deram-lhe três punhaladas e quinze dias de cama. Restabelecido, deram-lhe um tiro; foi o mesmo que nada. Então, o marido achou um meio de eliminar meu pai; tinha visto com ele alguns objetos, notas, e desenhos de cousas religiosas da Índia, e denunciou-o ao Santo Ofício, como dado a práticas supersticiosas. O Santo Ofício, que não era omisso nem frouxo nos seus deveres, tomou conta dele, e condenou-o a cárcere perpétuo. Meu pai ficou aterrado. Na verdade, a prisão perpétua para ele devia ser a cousa mais horrorosa do mundo. Prometeu, o mesmo Prometeu foi desencadeado... Não me interrompa, sr. Linhares, depois direi quem foi esse Prometeu. Mas, repito: ele foi desencadeado, enquanto que meu pai estava nas mãos do Santo Ofício, sem esperança. Por outro lado, ele refletiu consigo que, se era eterno, não o era o Santo Ofício. O Santo Ofício há de acabar um dia, e os seus cárceres, e então ficarei livre. Depois, pensou também que, desde que passasse um certo número de anos, sem envelhecer nem morrer, tornar-se-ia um caso tão extraordinário, que o mesmo Santo Ofício lhe abriria as portas. Finalmente, cedeu a outra consideração. “Meu filho, disse-me ele, eu tinha padecido tanto naqueles longos anos de vida, tinha visto tanta paixão má, tanta miséria, tanta calamidade, que agradeci a Deus, o cárcere e uma longa prisão; e disse comigo que o Santo Ofício não era tão mau, pois que me retirava por algumas dezenas de anos, talvez um século, do espetáculo exterior...”

— Ora essa!

— Coitado! Não contava com a outra fidalga, a viúva, que pôs em campo todos os recursos de que podia dispor, e alcançou-lhe a fuga daí a poucos meses. Saíram ambos de Espanha, meteram-se em França, e passaram à Itália, onde meu pai ficou residindo por longos anos. A viúva morreu-lhe nos braços; e, salvo uma paixão que teve em Florença, por um rapaz nobre, com quem fugiu e esteve seis meses, foi sempre fiel ao amante. Repito, morreu-lhe nos braços, e ele padeceu muito, chorou muito, chegou a querer morrer também. Contou-me os atos de desespero que praticou; porque, na verdade, amara muito a formosa madrilena. Desesperado, meteu-se a caminho, e viajou por Hungria, Dalmácia, Valáquia; esteve cinco anos em Constantinopla; estudou o turco a fundo, e depois o árabe. Já lhes disse que ele sabia muitas línguas; lembra-me de o ver traduzir o padre-nosso em cinqüenta idiomas diversos. Sabia muito. E ciências! Meu pai sabia uma infinidade de cousas: filosofia, jurisprudência, teologia, arqueologia, química, física, matemáticas, astronomia, botânica; sabia arquitetura, pintura, música. Sabia o diabo.

— Na verdade... — Muito, sabia muito. E fez mais do que estudar o turco; adotou o maometanismo. Mas deixou-o daí a pouco. Enfim, aborreceu-se dos turcos: era a sina dele aborrecer-se facilmente de uma cousa ou de um ofício. Saiu de Constantinopla, visitou outras partes da Europa, e finalmente passou-se a Inglaterra aonde não fora desde longos anos. Aconteceu-lhe aí o que lheacontecia em toda a parte: achou todas as caras novas; e essa troca de caras no meio de uma cidade, que era a mesma deixada por ele, dava-lhe a impressão de uma peça teatral, em que o cenário não muda, e só mudam os atores. Essa impressão, que a princípio foi só de pasmo, passou a ser de tédio; mas agora, em Londres, foi outra cousa pior, porque despertou nele uma idéia, que nunca tivera, uma idéia extraordinária, pavorosa...

— Que foi?

— A idéia de ficar doido um dia. Imaginem: um doido eterno. A comoção que esta idéia lhe dava foi tal que quase enlouqueceu ali mesmo. Então lembrou-se de outra cousa.

Como tinha o boião do elixir consigo, lembrou de dar o resto a alguma senhora ou homem, e ficariam os dous imortais. Sempre era uma companhia. Mas, como tinha tempo diante de si,não precipitou nada; achou melhor esperar pessoa cabal. O certo é que essa idéia o tranqüilizou... Se lhe contasse as aventuras que ele teve outra vez na Inglaterra, e depois em França, e no Brasil, onde voltou no vice-reinado do conde de Resende, não acabava mais, e o tempo urge, além do que o sr. coronel está com sono...

— Qual sono!

— Pelo menos está cansado.

— Nem isso. Se eu nunca ouvi uma cousa que me interessasse tanto. Vamos; conte essas aventuras.

— Não; direi somente que ele achou-se em França por ocasião da revolução de 1789, assistiu a tudo, à queda e morte do rei, dos girondinos, de Danton, de Robespierre; morou algum tempo com Filinto Elísio, o poeta, sabem? Morou com ele em Paris; foi um dos elegantes do Diretório, deu-se com o primeiro Cônsul... Quis até naturalizar-se e seguir as armas e apolítica; podia ter sido um dos marechais do império, e pode ser até que não tivesse havido Waterloo. Mas ficou tão enjoado de algumas apostasias políticas, e tão indignado, que recusou a tempo. Em 1808 achamo-lo em viagem com a corte real para o Rio de Janeiro. Em 1822 saudou a independência; e fez parte da Constituinte; trabalhou no 7 de Abril; festejou a Maioridade; há dous anos era deputado. Neste ponto os dois ouvintes redobraram de atenção. Compreenderam que iam chegar ao desenlace, e não quiseram perder uma sílaba daquela parte da narração, em que iam saber da morte do imortal. Pela sua parte, o dr. Leão parara um pouco; podia ser uma lembrança dolorosa; podia também ser um recurso para aguçar mais o apetite. O tabelião ainda lhe perguntou, se o pai não tinha dado a alguém o resto do elixir, como queria; mas o narrador não lhe respondeu nada. Olhava para dentro; enfim, terminou deste modo:

— A alma de meu pai chegara a um grau de profunda melancolia. Nada o contentava; nem o sabor da glória, nem o sabor do perigo, nem o do amor. Tinha então perdido minha mãe, e vivíamos juntos, como dous solteirões. A política perdera todos os encantos aos olhos dum homem que pleiteara um trono, e um dos primeiros do universo. Vegetava consigo; triste, impaciente, enjoado. Nas horas mais alegres fazia projetos para o século XX e XXIV, porque já então me desvendara todo o segredo da vida dele. Não acreditei, confesso; e imaginei que fosse alguma perturbação mental; mas as provas foram completas, e demais a observação mostrou-me que ele estava em plena saúde. Só o espírito, como digo, parecia abatido e desencantado. Um dia, dizendo-lhe eu que não compreendia tamanha tristeza, quando eu daria a alma ao diabo para ter a vida eterna, meu pai sorriu com uma tal expressão de superioridade, que me enterrou cem palmos abaixo do chão. Depois, respondeu que eu não sabia o que dizia; que a vida eterna afigurava-se-me excelente, justamente porque a minha era limitada e curta; em verdade, era o mais atroz dos suplícios. Tinha visto morrer todas as suas afeições; devia perder-me um dia, e todos os mais filhos que tivesse pelos séculos adiante. Outras afeições e não poucas o tinham enganado; e umas e outras, boas e más, sinceras e pérfidas, era-lhe forçoso repeti-las, sem trégua, sem um respiro ao menos, porquanto a experiência não lhe podia valer contra a necessidade de agarrar-se a alguma cousa, naquela passagem rápida dos homens e das gerações. Era uma necessidade da vida eterna; sem ela, cairia na demência. Tinha provado tudo, esgotado tudo; agora era a repetição, a monotonia, sem esperanças, sem nada. Tinha de relatar a outros filhos, vinte ou trinta séculos mais tarde, o que me estava agora dizendo; e depois a outros, e outros, e outros, um não acabar mais nunca. Tinha de estudar novas línguas, como faria Aníbal, se vivesse até hoje: e para quê? para ouvir os mesmos sentimentos, as mesmas paixões... E dizia-me tudo isso, verdadeiramente abatido. Não parece esquisito? Enfim um dia, como eu fizesse a alguns amigos uma exposição do sistema homeopático, vi reluzir nos olhos de meu pai um fogo desusado e extraordinário. Não me disse nada. De noite, vieram chamar-me ao quarto dele. Achei-o moribundo; disse-me então, com a língua trôpega, que o princípio homeopático fora para ele a salvação. Similia similibus curantur. Bebera o resto do elixir, e assim como a primeira metade lhe dera a vida, a segunda dava-lhe a morte. E, dito isto, expirou.

O coronel e o tabelião ficaram algum tempo calados, sem saber que pensassem da famosa história; mas a seriedade do médico era tão profunda, que não havia dúvida. Creram no caso, e creram também definitivamente na homeopatia. Narrada a história a outras pessoas, não faltou quem supusesse que o médico era louco; outros atribuíram-lhe o intuito de tirar ao coronel e ao tabelião o desgosto manifestado por ambos de não poderem viver eternamente, mostrando-lhes que a morte é, enfim, um benefício. Mas a suspeita de que ele apenas quis propagar a homeopatia entrou em alguns cérebros, e não era inverossímil. Dou este problema aos estudiosos. Tal é o caso extraordinário, que há anos, com outro nome, e por outras palavras, contei a este bom povo, que provavelmente já os esqueceu a ambos.


LEIA TAMBÉM: O IMORTAL - CONTO DE MACHADO DE ASSIS (Parte 1 de 2)


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