O texto original, na íntegra, pode portanto ser acessado em: UOL Esporte Fórmula 1
Segue abaixo o importante registro.
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Lívio Oricchio - Do UOL, em São Paulo - 28/04/2014
O que
você ainda não sabe sobre a morte de Senna, 20 anos depois
20 anos. Não parece. Remexo as fichas na minha memória
onde registrei as marcantes experiências vividas naquela época da F1 e logo compreendo
que as classificadas na letra S, especificamente as do envelope Ayrton Senna,
não me cobram grande empenho para localizá-las. Estão intensamente vivas, quase
se apresentam a mim.
As manipulo com a mente e sinto uma combinação de
emoções: começa com um distante toque de tristeza, mas imediatamente superado
por uma sensação de resignação, altivez e, por mais contraditória que pareça,
até mesmo de conforto. Espíritos elevados como o de Senna confortam os que se
lembram dele. E sua mensagem é tão palpável que absorvemos rapidamente sua
energia positiva. Sim, claro, presentíssima!
Cerca de seis anos depois de Senna dar sequência a sua
obra em outra esfera, aí pela temporada de 2000, redigi uma série de textos
relatando o que vi naquele fim de semana no circuito Enzo e Dino Ferrari, em
Ímola, e, depois, nos dias seguintes, na porta do Instituto Médico Legal de
Bolonha ou no tocante voo que trouxe o seu corpo para o Brasil.
Capítulo a capítulo
Tinha uma cópia desses textos comigo e a usei como
base para escrever o que apresento a seguir. Você vai viajar comigo pela
extensa obra, quase um minilivro. E, espero, se emocionar.
Vamos ver juntos como o acidente que matou não um
ídolo de milhões de brasileiros, mas um herói nacional, na curva Tamburello, às
14h17 do dia 1º de maio, não foi um episódio isolado, mas o desfecho de uma
história que, a rigor, começou um ano antes, quando Frank Williams,
surpreendentemente, concordou com a mudança radical do regulamento da F1.
Sua equipe, àquela altura, impunha vantagem técnica à
competição semelhante a da Mercedes na atual temporada e da Red Bull de 2010
até o ano passado. A proibição da maioria dos recursos eletrônicos adotada pela
FIA em 1994 deixou os carros extremamente instáveis. Um ano antes, Senna
definira o modelo FW15C-Renault da Williams, campeão do mundo com Alain Prost,
como "carro do outro planeta". Sua McLaren-Honda era muito mais
lenta.
Senna era necessário
Mas Frank Williams sabia que precisava de um piloto
como Senna para enfrentar outro grande talento que já distribuía cartões de
visita poderosos: Michael Schumacher. No fim de 1993, contratou quem queria. Os
dois realizavam seu sonho: Frank Williams e, principalmente, o brasileiro.
O carro do outro planeta, do projetista Adrian Newey,
o mesmo que enorme responsabilidade tem na recente hegemonia de Sebastian
Vettel, seria finalmente seu. Senna iniciou, no começo de 1994, os testes com o
modelo FW16-Renault da Williams. E não acreditou. Fora dos microfones, no
autódromo do Estoril, em Portugal, afirmou: "Esse carro é
'inguiável'". Adrian Newey errara na primeira versão do FW16.
20 anos do GP de San Marino de 1994. Tão distante e
tão próximo, ainda. Minha trajetória como jornalista especializado em F1
começou no GP do Brasil de 1987 e a partir de 1991 passei a ir a praticamente
todas as corridas. No ano que vem, completarei meu 400º GP. Quando estou nos
autódromos, tenho por vezes a impressão de que Senna vai sair a qualquer
momento dos boxes ou motorhomes das equipes e, então, poderemos conversar no
paddock.
Para mim, e para tantos com quem converso, Senna ainda
está aqui. Essa, talvez, seja a maior prova do significado do seu imenso
carisma, seu talento, sua grandiosidade como homem. Não temos a sensação de que
trabalha agora em outro plano. O mundo vai lembrar, na quinta-feira, dia 1º de
maio, os 20 anos da sua passagem.
Senna é uma figura viva, atuante, deixou algo para
todos nós. Discutimos em vários idiomas seu imenso legado, não só esportivo,
mas, principalmente, filosófico. E provavelmente eterno.
A F1 mudou em 94, e a Williams de Senna não era mais a
mesma
"Concordei com as mudanças porque me convenceram
de que elas seriam melhores para a F1", afirmou Frank Williams, na
apresentação do modelo FW16-Renault, no início de 1994. Sua equipe havia
vencido os mundiais de 1992, com Nigel Mansell, e de 1993, com Alain Prost,
encontrando enorme facilidade. Senna, de McLaren-Honda, já três vezes campeão
do mundo, não podia sequer acompanhá-los de perto, quanto menos desafiá-los na
luta pelo título.
Assisti ao primeiro treino livre do GP da África do
Sul de 1992 atrás do guardrail das curvas 1 e 2 do circuito de Kyalami, ao lado
do mestre Jackie Stewart, campeão em 1969, 1971 e 1973. Era a etapa de abertura
do campeonato. Depois de ver Mansell percorrer aquelas curvas com o modelo
FW14-Renault da Williams, e comparar, por exemplo, com o MP4/6-Honda de Senna,
Stewart comentou: "O mundial acabou, a não ser que a nova McLaren se
mostre tão mais veloz quanto esse carro da Williams, o que não acredito".
A McLaren iria estrear o seu modelo de 1992, a princípio, somente na quinta
etapa, dia 17 de maio, em Ímola.
Quando regressei para o paddock de Kyalami, vi Senna
caminhando para o motorhome da McLaren. Outros jornalistas tiveram a mesma
ideia de saber sua opinião a respeito do que acabáramos de ver na pista. A
mecânica de operação da imprensa não tinha nada a ver com a doentia proibição
para tudo que acontece hoje em dia. Senna nos disse: "Fui dois segundos
mais lento (do que Nigel Mansell). Estamos muito atrás. Temos de apressar a
estreia do novo carro e não há nenhuma certeza de que seja dois segundos mais
rápido para pensarmos em lutar com eles (Williams)".
A McLaren introduziu seu modelo MP4/7-Honda no GP do
Brasil de 1992, terceiro do ano, e, como o previsto por Senna, não era mesmo
dois segundos mais rápido que o monoposto de 1991, usado por Senna na África do
Sul e no México, as duas primeiras provas, ambas vencidas facilmente por Nigel
Mansell.
Senna critica a McLaren
"É só vocês olharem para os dois carros (da
Williams e da McLaren). Dá para ver que há hoje na F1 uma nova forma de se
explorar a aerodinâmica, existente já desde o ano passado, lançada pela
Williams. Eles, neste ano, ainda a melhoraram. E nós sequer a temos",
afirmou Senna, bastante crítico ao conservadorismo da McLaren. Era o gênio de
Adrian Newey, um engenheiro aeronáutico, se manifestando na concepção dos
carros da Williams.
O regulamento da F1 em 1992 e 1993 permitia uma série
de recursos eletrônicos, como a suspensão ativa, entre outros. E a organização
de Frank Williams, comandada por Adrian Newey, fora a que melhor respondera
àquela realidade da categoria.
O principal coordenador de toda a eletrônica embarcada
nos modelos da Williams era um jovem engenheiro, sempre acessível, chamado
Paddy Lowe. Esse inglês, hoje com 52 anos, é o atual diretor técnico da
Mercedes, time que, com Lewis Hamilton e Nico Rosberg, domina o início do
campeonato atual.
Até mesmo os donos das outras equipes, em 1993,
estranharam o fato de Frank Williams assinar o documento que garantia a mudança
nas regras técnicas da competição para 1994. O Pacto da Concordia, em vigência,
exigia unanimidade dentre os proprietários de escuderias para haver uma
alteração tão radical das regras como a que ocorreu naquele ano. Para Frank
Williams manter sua hegemonia, bastava dizer não a todos que evocavam uma
profunda revisão conceitual em tudo o que havia na F1, técnica e
esportivamente.
Acabar com a hegemonia da Williams
Em outras palavras, o que Bernie Ecclestone, promotor
do show, e Max Mosley, presidente da FIA, desejavam era acabar com a
superioridade absoluta da Williams. Tornar a F1 mais emocionante. Foi a mesma
estratégia usada agora, com a Red Bull, ao trocar o motor aspirado V-8 de 2,4
litros por uma unidade motriz híbrida, com um V-6 Turbo de 1,6 litro e dois
motores elétricos.
Havia um agravante a mais para a F1 naquele avanço
todo da Williams em 1992 e 1993: o principal piloto do time a partir de 1994
seria Ayrton Senna. "Tenho receio de que ele vença as 16 etapas do
campeonato, o que será péssimo para a F1", disse, na época, Flavio
Briatore, diretor da Benetton, equipe da estrela emergente Michael Schumacher.
O time era oficial da Ford e utilizaria um motor V-8, enquanto a Williams, da
Renault, teria um V-10, ambos de 3,5 litros de volume. A diferença de potência
em favor da Williams era significativa, estimada em 70 cavalos. Mais à frente,
falaremos de como o carro da Benetton competiu com o controle de tração, mesmo
com o recurso proibido.
A aprovação de Frank Williams era essencial para mudar
o regulamento e, com isso, reverter essa expectativa de sua escuderia vencer
tudo. Se os recursos eletrônicos fossem proibidos, todos os projetistas
partiriam quase do zero para conceber seus novos carros. Isso permitiria um
maior nivelamento dos concorrentes. Tirariam da Williams o que ela tinha de
melhor: o seu supereficiente sistema de suspensão ativa, o que fazia com que
seus monopostos desfrutassem ao máximo da sua refinada aerodinâmica, principal
fator de diferenciação nos projetos de Adrian Newey.
A FIA anunciou, em grande estilo, em meados da
temporada de 1993, depois da concordância de Frank Williams, que toda e
qualquer ajuda ao piloto, durante a condução, estaria proibidas a partir do ano
seguinte. Assim, estariam vetados a suspensão ativa, o câmbio automático, o
acelerador eletrônico, o controle de tração, o diferencial autoblocante
autoajustável e os freios ABS.
O carro deveria ser conduzido apenas pelo piloto. Os
auxílios à pilotagem não mais seriam tolerados. O objetivo era valorizar o
homem, não o equipamento. Para aumentar a possibilidade de não mais haver
resultados tão previsíveis quanto em 1992 e 1993, assim como tornar as corridas
mais atrativas, com as equipes adotando diferentes estratégias de competição, a
FIA reintroduziu o reabastecimento de combustível, proibido desde 1984.
Foi diante desse novo desafio que Adrian Newey e
Patrick Head, diretor-técnico e sócio de Frank Williams, começaram a trabalhar
no projeto do FW16, o carro em que Senna se acidentou e morreu.
No próximo capítulo, vamos falar um pouco mais das
características desse monoposto revolucionário, onde o semieixo funcionava como
elemento da suspensão e do conjunto aerodinâmico. As primeiras suspeitas sobre
a causa do acidente de Senna recaíram na sua ruptura.
Iremos mais fundo também no dia em que Adrian Newey e
Frank Williams decidiram recuar e experimentar o modelo de 1993, adaptado ao
regulamento de 1994. O motivo: logo nos primeiros treinos, Senna, profundamente
decepcionado, deixou claro aos dois que havia algo errado com o FW16. Seu
companheiro, Damon Hill, ratificou a sua impressão. Senna havia pilotado o
FW15C de 1993 adaptado e o considerou muito superior ao modelo que o
substituiria.
Por
que a Williams que matou Senna era "inguiável"?
GP do México de 1990, circuito Ricardo e Pedro
Rodriguez, dia 23 de junho. Os dois carros da equipe Leyton House, ex-March,
pilotados por Ivan Capelli e Mauricio Gugelmin, não se classificam para
disputar a prova. Havia 29 inscritos e apenas os 26 mais rápidos largariam. O modelo
CG901 do time, equipado com motor Judd V-8 e concebido pelo então novato
engenheiro Adrian Newey, o mesmo da Williams em 1994, não conseguiu ser veloz
nas muitas ondulações dos 4.421 metros da pista mexicana.
No veloz S de alta velocidade daquele traçado e,
principalmente, na desafiante Peraltada, contornada em 5.ª marcha a cerca de
250 km/h, o CG 901 não gerava a pressão aerodinâmica necessária – por conta da
sua suspensão quase não ter curso, ser muito dura. A cada irregularidade do
asfalto, o monoposto saltava, variando a densidade do ar sob o assoalho e, por
consequência, sem gerar tanta downforce, a pressão que "empurra" o
carro contra o asfalto, tornando-o mais rápido nas curvas.
Avancemos apenas quinze dias no tempo, até 8 de julho
de 1990, data do GP da França, realizado no circuito de Paul Ricard, próximo de
onde resido, em Nice. Um tapete de pista, em oposição ao cenário da etapa
anterior do Mundial, no México. Os seus 3.813 metros eram planos como uma
imensa mesa de bilhar. O que aconteceu? O mesmo modelo CG 901 da Leyton House
permitiu que Ivan Capelli quase vencesse a prova. O italiano liderou 45 das 80
voltas da corrida.
Ivan Capelli é comentarista da TV italiana e nos
tornamos amigos. Com regularidade, almoçamos no motorhome da Pirelli ou da
Ferrari. É ele que dá, agora, detalhes daqueles dois GPs de comportamentos
antagônicos para o seu carro. "No México, com todas aquelas ondulações, o
March estolava". Isso quer dizer que perdia completamente a pressão que o
mantinha no solo. "Tínhamos de ser prudentes para não perder o controle
total do carro".
A Williams, como a March
Nos primeiros testes de Senna em 1994 com o FW16 no
Estoril, próximo a Lisboa, ouvimos exatamente a mesma coisa. Ivan Capelli
contou-me mais: "Não havia curso nas suspensões. Elas não absorviam
nenhuma elevação ou depressão do asfalto. Nós sentíamos tudo no bumbum".
Pois Senna fez comentário semelhante também.
O piloto italiano, no entanto, se divertiu em Paul
Ricard. "Alain Prost tinha um motor V-12 na sua Ferrari e, mesmo sendo bem
mais rápido que eu na longa reta, não me passava. Minha velocidade de curva era
bem maior", disse, rindo. "Foi uma pena a luz de pressão do óleo
acender, o que me obrigou a trocar as marchas com menos giros e, claro, ser
mais lento. Mesmo assim, terminei em segundo, a apenas oito segundos do Alain
Prost." E lembra: "Isso tudo depois de sequer me classificar duas
semanas antes no México".
Todas as cartas na aerodinâmica
O que eu quero dizer? Que os projetos de Adrian Newey,
como o CG 901 e depois, quatro anos mais tarde, o FW16 da Williams, baseavam
sua performance quase que exclusivamente na aerodinâmica. E até hoje, na Red
Bull, não é diferente. Ele cresceu muito como engenheiro e os recursos à
disposição, agora, o permitem atenuar esses efeitos indesejáveis de conceber um
monoposto sem curso nas suspensões a fim de obter, teoricamente, o máximo de
resposta aerodinâmica.
Se o asfalto fosse plano e permitisse que o assoalho se deslocasse paralelo
ao solo, sem haver muita variação de altura, o carro alcançava velocidades
extraordinárias nas curvas, por conta de gerar elevada pressão aerodinâmica.
Com certeza, mais que a dos seus adversários, como Ivan Capelli demonstrou em
Paul Ricard quando, com um motor V-8, quase vence um rival com um V-12, como a
Ferrari de Alain Prost.
Agora, se a pista fosse ondulada, o carro quase não
fazia curva. O ar variava muito de densidade sob o assoalho, por conta dos
pulos, e essa falta de uniformidade dos fluxos de ar não permitiam a geração de
pressão aerodinâmica.
Responsabilidade no acidente
A insistência no tema tem uma razão: esse era o maior
problema da Williams FW16 e teve peso elevado na média ponderada de
responsabilidades que explica o acidente fatal de 1.º de maio.
Podemos recorrer a um exemplo um tanto grosseiro, mas
válido, para tentar entender o que se passava com o carro de Ivan Capelli e a
Williams de Senna. Se você encher demais os pneus do seu carro, bem além das
libras recomendadas, o que acontece? Em qualquer das muitas depressões e
elevações do asfalto nas cidades brasileiras, ele irá pular em demasia, não é?
Dá para sentir isso, sem dificuldades, no volante. Torna-se instável.
Com um carro de Fórmula 1 sem suspensão, como eram os
de Adrian Newey, para tentar fazer o assoalho correr paralelo ao solo, era o
mesmo – obviamente, numa proporção bem maior. No nosso carro, o pneu pode estar
duro, por ter maior pressão, mas a suspensão ainda absorveria parte das
irregularidades. Portanto seria menos grave que nos exemplos da F1. No México,
os pilotos não se classificaram e, duas semanas apenas mais tarde, na França,
um deles quase vence a prova. Dá para entender quão decisiva é a aerodinâmica
na F1?
Agora vamos entrar no túnel do tempo de novo para
desembarcar em fevereiro de 1994, quando Senna já testava o modelo FW16 da
Williams projetado pelo mesmo Adrian Newey. O engenheiro acabou dispensado da
Leyton House, em meados da temporada de 1990, em razão da instabilidade de
resultados que seu monoposto gerava. Tudo ou nada.
Vale a pena eu colocar aqui uma frase dita pelo homem
que assumiu a equipe naquela época, no lugar de Adrian Newey: o austríaco
Gustav Brunner, hoje aposentado da F1. "Tão logo vi o projeto de Adrian
Newey, o CG 901, disse a mim mesmo: como ele quer que funcione?" Eu ouvi
isso de Brunner, com quem até hoje costumo manter breves conversas.
Adrian Newey renova a Williams
Mandado embora da Leyton House, Adrian Newey foi
chamado por Patrick Head, da Williams, cujos dois últimos projetos, de 1988 e
1989, não eram nem a sombra do que venceu o Mundial de 1987, com Nelson Piquet.
A Williams precisava de conceitos novos.
O surrealismo das ideias de Adrian Newey em
sincretismo com a praticidade, por vezes exacerbada, de Head resultou numa
combinação perfeita. "Eu tinha de puxar Adrian pelas pernas de volta para
a terra", contou-me Patrick Head.
E falou mais da sua convivência de sucesso com o
projetista: "No começo, ele nos apresentava o que desejava fazer e, por
vezes, nos chocava. Sabíamos que não haveria como funcionar. Para trabalhar com
Adrian é preciso dispor de muito bom orçamento. Ele realiza um número grande de
experiências até encontrar o resultado que deseja. Assim, as soluções notáveis
que seus carros incorporam na realidade representam o resultado de elevados
investimentos em pesquisa. Adrian é muito intuitivo".
Já em 1991, o modelo FW14-Honda da Williams, o
primeiro da parceria entre Adrian Newey e Patrick Head, levou Nigel Mansell a
disputar o título com Senna, de McLaren MP4/6-Honda, até a penúltima etapa do
campeonato, no Japão. A vitória final ficou mais por conta do talento de Senna
e das dificuldades iniciais da Williams com a confiabilidade do seu novo carro.
A Williams já havia deixado, tecnicamente, a McLaren
para trás. Em 1992 e 1993 não houve concorrência: o modelo FW14 de 1992 foi campeão
com Nigel Mansell já no GP da Hungria e, na temporada seguinte, o FW15C, com
Alain Prost, era muito superior ao usado pelos adversários.
1993, o ano de Senna
Pessoalmente, vejo a temporada de 1993 como a mais
fantástica de Senna na F1. A McLaren competia com motor Ford V-8, adquirido sob
leasing da Cosworth. Não era o V-8 Ford destinado à escuderia oficial da
montadora, a Benetton, de Michael Schumacher. Entre o motor da McLaren de Senna
e o da Benetton havia pelo menos 20 cavalos de diferença em favor da versão
oficial da Ford.
Entre o V-8 versão cliente de Senna e o V-10 oficial
da Renault para a Williams de Alain Prost, os cerca de 90 cavalos a mais à
disposição do francês definiam quase outra categoria.
Recordo de ver Senna comentar conosco naquele ano, em
Hockenheim, na Alemanha: "Não dá para competir aqui com o baixinho (Alain
Prost). Ele acelera na saída da chicane e eu o vejo ir embora, embora sem que
possa fazer nada".
Mesmo assim, Senna venceu cinco etapas: Brasil, Europa
(em Donington, memorável, diga-se), Mônaco, Japão e Austrália. Alain Prost
ganhou sete GPs e ficou com o título.
Carro sobre trilhos
Há alguns anos, visitei a Williams em Grove, a oeste
de Londres. Estava no salão onde o time inglês mantém todos os seus carros de
F1. Jonathan Williams, filho de Frank Williams, me perguntou qual daqueles
modelos eu mais apreciava. Respondi sem hesitar que era o FW15C, de 1993, o
monoposto de F1 que mais reuniu eletrônica embarcada na história.
Vê-lo percorrer as pistas equivalia a assistir à passagem
de um desses trens supervelozes. O FW15C parecia se deslocar sobre trilhos, tal
sua estabilidade. Lembro-me de, em 2012, na área interna da Parabólica, de
Monza, detectar grandes semelhanças entre as reações extraordinariamente
equilibradas do modelo RB8-Renault da Red Bull de Sebastian Vettel, carro que
melhor explorava o conceito do escapamento aerodinâmico, e o FW15C-Renault da
Williams de Alain Prost em 1993.
Por que o carro anterior ao que Senna bateu e morreu
em Ímola era tão diferente, mais eficiente, do usado por ele naquele GP de San
Marino de 1994?
Na Fórmula 1, nada se explica isoladamente. Mas, em
essência, a maior vantagem da Williams era exatamente na aerodinâmica. E o
grupo de técnicos de Patrick Head desenvolveu um sistema de suspensão ativa tão
complexo quanto preciso. As irregularidades do asfalto eram absorvidas por ela.
Tanto o FW14, de 1991, e o FW14B, de 1992, quanto o FW15C conseguiam manter o
paralelismo ao solo de seus assoalhos em função da incrível suspensão ativa do
carro. E, para alegria de Adrian Newey, em qualquer circuito.
Patrick Head e a sua suspensão ativa fizeram com que,
vamos chamar assim, os dois projetos da Williams corressem dentro de um túnel
de vento, já que a maior parte das variáveis encontradas na pista eram anuladas,
ou minimizadas, pela suspensão ativa da equipe.
O sistema fazia com que o carro se deslocasse sempre
em condições semelhantes para as quais foi projetado, sem as indesejáveis
interferências, como a frente abaixar nas freadas ou levantar nas acelerações e
inclinações nas curvas. Ainda que mínimas, essas variações interferem
radicalmente na capacidade de gerar pressão aerodinâmica do monoposto.
Curiosamente, fala-se agora, abril de 2014, em voltar
a admitir a suspensão ativa na F1 a partir de 2016. Com os recursos de hoje,
isso elevaria sobremaneira a performance dos carros. Questiono se não afetaria
a segurança da competição.
Voltando a 1993. Quando Senna corria atrás do modelo
FW15C de Alain Prost, mal podia compreender como sua velocidade nas curvas, em
especial nas rápidas, era tão elevada. Sua McLaren MP4/8 Ford, concebida por
Neil Oatley, até hoje do grupo de engenheiros da McLaren, além de possuir um
motor com cerca de 90 cavalos a menos de potência, não tinha a mesma eficiência
aerodinâmica do FW15C.
Foi a partir dessas constatações, na pista, que Senna
chamou o modelo da Williams de "carro do outro planeta". Era esse
monoposto de Fórmula 1 que ele sonhava dirigir quando foi para lá. Agora, o que
Senna, Frank Williams e Adrian Newey não imaginavam era o estrago que faria nos
seus sonhos a proibição da suspensão ativa, a partir de 1994.
A Williams retornou, com a mudança no regulamento,
guardadas as proporções, ao estágio da Leyton House de 1990. Adrian Newey
conceberia para a Williams um carro para, de novo, funcionar dentro apenas da
condição ideal do túnel de vento. No asfalto irregular das pistas, a coisa não
daria certo. Por esse motivo, Senna ficou tão surpreendido logo nos primeiros
testes. Como ele lembrou, o FW16, na sua versão original, era inguiável.
Só na sua segunda versão, utilizada a partir do GP da
França, o carro se tornou mais previsível e competitivo. Tanto que Damon Hill,
companheiro de Senna, disputou o Mundial com Michael Schumacher na etapa de
encerramento da temporada, em Adelaide, na Austrália.
Projeto ousado
A preocupação com a aerodinâmica no FW16 foi tão
obsessiva que a suspensão traseira não possuía triângulo superior. O semieixo
de tração funcionava também como um componente da suspensão, carenado com um
perfil de asa, como se fosse um segundo aerofólio traseiro, mas de dimensões
reduzidas. A FIA relutou em aceitar a suspensão, por ser um elemento móvel com
função aerodinâmica, algo previsto e proibido pelo regulamento. Acabou
validando a ideia. Para quem se interessar, faça uma consulta na internet sobre
como era a suspensão traseira da Williams de Senna.
No momento do acidente, no GP de San Marino, pela
exigência a que estavam submetidos o triângulo inferior e o semieixo, já que
não havia na suspensão triângulo superior, pensou-se, em princípio, que
ocorrera alguma quebra nessa suspensão revolucionária.
A dinâmica do acidente, com o FW16 seguindo direto
pela tangente da curva Tamburello, porém, não sugeria o rompimento desses
componentes. O mais natural seria que o carro rodasse e não fosse reto, como
vimos. Mesmo assim, as suspeitas iniciais recaíam nesse sistema, tão avançado
quanto complexo.
Voltar para o carro de 1993
Por conta da dificuldade de pilotar o seu carro, Senna
solicitou a Frank Williams treinar também com o FW15C adaptado ao regulamento
de 1994. Ou seja, sem os recursos eletrônicos proibidos pelas novas regras. A
Williams já tinha o carro pronto, pois foi usado como laboratório para as
experiências de Adrian Newey antes de construir o FW16. Senna sentia que o
carro-protótipo era bem melhor, pelo menos mais previsível, que o novo.
Adrian Newey bateu o pé e disse que, se aquela fosse a
opção da Williams, não haveria depois como recuperar o tempo perdido para o
desenvolvimento do FW16, o carro que deveria seguir adiante na temporada. Senna
e Frank Williams acabaram sendo convencidos pelo projetista e por Patrick Head.
Foi com o FW16 que o tricampeão desembarcou no Brasil para a abertura do
Mundial de 1994. Na escuderia que ele sempre sonhara e no posto em que os
brasileiros tanto aguardavam.
O que pouca gente sabia era que Senna estava
profundamente desconfiado daquele carro, no qual ele quase não cabia e mal
conseguia pilotar, tal a sua instabilidade ao passar sobre qualquer
irregularidade do asfalto. Os 45 mil torcedores que foram a Interlagos naquele
27 de março de 1994, no GP do Brasil, imaginavam ver Senna no monoposto que
fizera Nigel Mansell e Alain Prost sobrarem na pista. O que Senna não faria
então?
A
trapaça da Benetton de Schumacher colocou pressão em Senna
Faltavam 16 voltas para o encerramento do GP do Brasil
de 1994, prova de abertura daquela temporada, quando Ayrton Senna acelerou um
pouco mais do normal, na saída da curva Junção, em Interlagos, como reconheceu,
e sua Williams FW16-Renault lançou a traseira para fora, fazendo-o rodar na
pista e abandonar a competição. Michael Schumacher, com a Benetton B194-Ford,
liderava a corrida, menos de cinco segundos à frente de Senna.
Apesar de todas as dificuldades já descritas com o
carro, graças ao seu imenso talento, Senna estabelecera a pole position do GP
do Brasil, na sua estreia na Williams. Não há dúvida de que a maior potência do
motor Renault V-10 da Williams, diante do Ford V-8 da Benetton de Michael
Schumacher, o ajudou, num circuito de retas longas e subidas íngremes, a
conquistar o resultado no treino de classificação. Senna fez 1min15s962 e o
alemão, 1min16s290.
E desde a largada Senna manteve-se em primeiro, com
Michael Schumacher sempre muito próximo. Os dois entraram juntos no pit stop
para troca de pneus e reabastecer o carro, outra grande novidade na F1 naquele
ano.
A multidão que lotou as arquibancadas de Interlagos
acompanhou com apreensão a parada de Senna nos boxes, líder, e Schumacher,
segundo, na 21.ª volta do GP do Brasil, que teve 71 no total. Dali, talvez,
pudesse sair o vencedor da prova.
Benetton irregular
A Benetton foi mais "eficiente" e o alemão
saiu na frente, com Senna imediatamente atrás. Com um carro difícil de guiar,
que pulava a cada ondulação do piso de Interlagos, e elas são muitas, o
brasileiro foi obrigado a buscar o seu elevado limite para tentar ganhar a
posição perdida. "Corri para vencer, o segundo lugar não interessava, a
mim e a essa gente toda nas arquibancadas", revelou.
Nessa tentativa de colocar sua Williams o mais próximo
possível da Benetton de Michael Schumacher na saída da Junção, Senna
ultrapassou o limite do FW16 da Williams e rodou. Ele sabia que sua velocidade
no final daquele longo trecho de aceleração plena, com cerca de 1.200 metros,
até a freada do S do Senna, era mais elevada que a de Michael Schumacher, daí a
manobra arriscada. Precisaria sair encostado ao câmbio da Benetton para tentar
a manobra de ultrapassagem na freada do S do Senna. Não deu certo.
Oito corridas mais tarde, explodiria um episódio que
acabou por justificar a sua perda da liderança na corrida de Interlagos. A
Benetton do companheiro de Michael Schumacher, o holandês Jos Verstappen, parou
para o seu primeiro pit stop no GP da Alemanha, na 15.ª volta, e de repente
viu-se envolvido pelas chamas de 60 litros de gasolina que queimavam.
A válvula de fechamento da mangueira de alta pressão
usada pela equipe manteve-se aberta, espalhando combustível para todo o lado.
Ao encostar nos canos de escape, cujos gases fluem a cerca de 700 graus Celsius,
a Benetton se transformou numa bola de fogo.
Pegos na falcatrua
O que foi apurado pela investigação da FIA
surpreendeu: os técnicos da Benetton haviam retirado um filtro do sistema de
reabastecimento, a fim de aumentar a velocidade de fluxo da gasolina e tornar
os pit stops mais rápidos. Burlaram a regra, portanto. Uma impureza, que seria
facilmente retida pelo filtro, manteve a válvula aberta, jorrando a gasolina
para fora.
Estava explicada aquela "eficiência" dos
mecânicos da Benetton no GP do Brasil, para que Michael Schumacher saísse à
frente de Senna no pit stop conjunto na volta 21. O equipamento para
reabastecer na Fórmula 1 era produzido por uma empresa francesa,
Intertechnique, e todas as escuderias deveriam usá-lo, sempre sob regras rígidas
determinadas pela FIA, sem alterá-lo.
Essa perda do primeiro lugar da corrida do Brasil, nos
boxes, foi a causa básica do erro de Senna na Junção, já que ele queria de
todas as formas a vitória diante da sua torcida. Ao longo daquele campeonato,
também cresceram muito as suspeitas de que a Benetton utilizava um tão complexo
quanto enrustido sistema de controle de tração.
Esse recurso justificaria em boa parte o excepcional
desempenho do modelo B194, dotado com um motor V-8, capaz de desenvolver cerca
de 70 cavalos a menos que o V-10 Renault da Williams. Só a competência de
Michael Schumacher como piloto, inegável, não era suficiente para explicar suas
seis vitórias e uma segunda colocação seguidas no começo do ano.
Veremos que a frustração de Senna e de milhões de
torcedores se elevaria ainda mais na etapa seguinte do Mundial, o GP do
Pacífico, no circuito TI, em Aida, no Japão, disputado três semanas depois do
GP do Brasil. Com o gostinho amargo de não ter somado nenhum ponto na sua
estreia na equipe do "carro do outro planeta", em Interlagos, Senna
encarava a vitória na corrida de Aida como uma obrigação.
Senna resignado
Já sem esconder muito sua preocupação com o modelo
FW16 da Williams, Senna disparou: "Todo mundo imaginava que a Williams
iria arrebentar de novo, ganhando tudo, mas essa não era a minha opinião".
As suas 65 poles, ao longo dos 161 GPs disputados,
fazem de Senna, para muita gente, como eu, o maior velocista de todos os tempos
na F1. Essa sua capacidade de tirar tudo e mais um pouco do carro, em uma única
volta lançada, assumindo riscos que poucos ousariam, deram a ele a pole no GP
do Pacífico, como já ocorrera no Brasil.
Na etapa de São Paulo, a Benetton de Michael
Schumacher tinha, possivelmente, o controle de tração. Além disso, o equipamento
de reabastecer do seu time, sem o filtro de gasolina, contribuiu, também (e
pode, inclusive, ter sido determinante), para o resultado final da corrida.
Quanto aos recursos eletrônicos escusos da Benetton,
há na F1 a certeza da sua existência, ainda que ninguém conseguisse provar. Com
os métodos adotados hoje pela FIA, não haveria escapatória para a organização
dirigida por Flavio Briatore. A Benetton seria punida. Isso não tira os méritos
da sua evolução como equipe e do supertalento de Michael Schumacher.
Costuma-se dizer nos acidentes aéreos que a queda de
uma aeronave decorre da combinação de vários fatores. Uma pane de motor na
decolagem, por exemplo, não deve gerar um acidente, uma vez que o projeto prevê
essa situação e a tripulação é treinada para agir conforme a recomendação do
fabricante.
É preciso, segundo os especialistas, mais de uma causa
primária para ocorrer o acidente, como por exemplo, a não observação correta
dos procedimentos a serem tomados, por parte do piloto, em situações de pane.
Ou, ainda, uma pane seguida de outra, o que é muito raro, anulando os recursos
de defesa do avião contra a condição difícil em que se encontra no ar.
Sucessão de eventos desfavoráveis
A morte de Senna segue o mesmo modelo. Veja só o que
aconteceu no GP do Pacífico. Sem que ninguém até hoje compreendesse bem o
porquê, o diretor de prova, o despreparado belga Roland Bruynseraede, impôs
que, na volta de apresentação, os carros seguissem o safety car. Não chovia.
Senna qualificou a decisão de "absurda".
Normalmente, o piloto que larga na pole dita o ritmo da volta de apresentação.
Os seus interesses são os mesmos dos que estão atrás dele, e por esse motivo,
nessa hora, exige dos freios, para aquecê-los, procura também elevar a
temperatura dos pneus, tudo sob velocidade compatível com as exigências de um
monoposto de F1.
Naquele dia, 17 de abril de 1994, o safety car liderou
o pelotão dos 26 que iriam largar na segunda etapa do Mundial a uma velocidade
muito reduzida. Resultado: quando os carros alinharam para a largada, nada
estava de acordo com as necessidades desses veículos, em especial a temperatura
dos freios e dos pneus. Senna e Schumacher dividiam a primeira fila, a exemplo
do GP do Brasil.
Pouco mais de 200 metros depois da largada, em que
Michael Schumacher, por conta do possível controle de tração pulara à frente de
Senna, o finlandês Mika Hakkinen freou e nada de sua McLaren MP4/9-Peugeot
parar como deveria em condições normais. Foi a traseira da Williams de Senna
que o segurou.
Hakkinen bateu no carro de Senna, lançando-o para a
caixa de brita. Nicola Larini, que estava substituindo Jean Alesi, que quebrara
uma vértebra cervical num acidente em Mugello, completou o serviço de colocar
Senna para fora da prova ao bater na sua Williams em plena brita. O italiano
também ficou de fora do GP.
Williams ficou muito para trás
Sem adversários, Michael Schumacher passeou na pista e
impôs quase uma volta de vantagem para o segundo colocado, Gerard Berger, com a
Ferrari 412T1. Em resumo: Senna tinha agora nenhum ponto, contra 20 de Michael
Schumacher. Mais: enquanto a Benetton, apesar das possíveis irregularidades no
carro, havia de fato evoluído bastante de uma temporada para a outra, a
Williams tomara rumo oposto.
Parte da torcida não enxergava os imensos problemas de
Senna com o carro e não levava em conta o segundo desgaste do piloto pelo
experimentado na largada em Aida. O que importava era que Senna estava
finalmente na Williams, seu tão sonhado time, e não vencera nenhuma vez diante
de duas vitórias de Michael Schumacher, àquela altura, com o abandono de Alain
Prost da F1, no fim do campeonato anterior, o maior rival do brasileiro.
A cabeça de Senna estava pegando fogo. A pressão em
cima da equipe Williams também começava a aumentar assustadoramente. Tudo o que
Frank Williams desejara da Renault e dos patrocinadores da sua equipe, em especial
a Rothmans, havia obtido.
Senna custava muito caro para a época, algo em torno
de US$ 18 milhões por temporada. Na pista, contudo, a organização de Frank
Williams não estava correspondendo. O GP de San Marino, em Ímola, apenas 15
dias mais tarde, seria a grande oportunidade para que todos esquecessem os
pesadelos dos GPs do Brasil e do Pacífico. Desta vez, não poderia existir
falhas. De ninguém
Williams
machucava as mãos de Senna (e reparo foi fatal)
Na quinta-feira anterior ao GP de San Marino, terceira
etapa do Mundial de 1994, vários jornalistas aguardavam a chegada de Senna ao
autódromo Enzo e Dino Ferrari, em Ímola. Dentre eles, eu. Já passava das 15
horas e nada de ele aparecer na pista.
Estava numa cidade próxima, não me recordo o nome,
talvez Ferrara, para o lançamento de uma bicicleta com a marca Senna. Ela
reunia, claro, o que de mais avançado existia em termos de tecnologia. Senna
procurava associar seu nome apenas a produtos de excelência.
De repente, uma pequena multidão começou a se deslocar
dentro do paddock, sinal característico da aproximação de Senna. Com Senna era
sempre assim. Onde estivesse, no mundo todo, seu carisma, sua forma de
instalar-se no coração das pessoas o tornavam íntimo de brasileiros, japoneses,
malaios, hondurenhos e australianos. Sua figura tinha a extraordinária
capacidade de as pessoas não se lembrarem da sua origem, cor ou religião.
Quem o via, manifestava a sensação de ser íntimo dele,
ainda que o visse apenas na TV ou nas fotos. A forma carinhosa, fraterna como o
abordavam denunciava essa relação muitas vezes mística entre a torcida e o
piloto. Senna morava dentro de cada um. Milhões o transportavam consigo onde
estivessem. Na maioria das vezes Senna convivia bem com isso e certamente
apreciava. Em outras, evitava o público e isso levou alguns torcedores se
decepcionarem.
Nem sempre compreensivo com a torcida
Presenciei cenas das duas naturezas. Uma ficou
marcada. No GP da França de 1992, Michael Schumacher forçou a ultrapassagem em
Senna, no fim da grande reta de Magny-Cours, depois da largada, colidindo na
McLaren-Honda. Senna teve de abandonar. O alemão prosseguiu na corrida.
Mas na 18ª volta de um total de 72 previstas, começou
a chover forte e Roland Bruynseraede interrompeu a corrida. Senna foi então
tirar satisfações com Michael Schumacher. Saí da cabine da Jovem Pan ao ver
Senna indo na sua direção e assisti ao espetáculo de perto. Ameaçou o alemão:
"Vim aqui porque te respeito. Mas saiba que da próxima vez antes de você
me acertar de novo serei eu a te acertar". E saiu. Michael Schumacher
permaneceu olhando para baixo, com cara de raiva. Mas não disse nada.
Em seguida Senna foi para o paddock. Nesse instante um
grupo de jovens se aproximou, andou ao seu lado e quando Senna parou eles
pediram um autógrafo. Senna estava fora de si. Falou quase gritando: "Não,
agora não, não vou dar autógrafo. Deixem-me em paz".
Nem todos, obviamente, compreenderam que seu estado
emocional não era o ideal para uma aproximação daquelas. Mas talvez fosse sua
única chance ao lado do ídolo. Da mesma forma, aquela reação foi desmedidamente
agressiva com quem não tinha responsabilidade no ocorrido. Com certeza aqueles
moços e moças se decepcionaram.
Um ser imortal
Mas voltando ao Senna mais conhecido. Sua
determinação, competência e fé, esta nunca escondida, o transformaram num
semideus, um ser imortal. A comoção que se seguiu a sua morte decorre muito
dessa conotação de imortalidade que lhe atribuíam.
Entre atender os jornalistas de língua inglesa e
italiana, quinta-feira à tarde, no autódromo de Ímola, Senna comunicou a nós
brasileiros que em seguida falaria conosco. Esperamos alguns minutos e ele
entrou no motorhome da Williams. Conversou rapidamente com Frank Williams e
sentou-se para comer.
Estava numa das mesas da área coberta, ao lado do
ônibus da equipe. Os milionários motorhomes de hoje não existiam. As equipes se
limitavam a seus ônibus e lonas estendidas, onde sob ela tudo acontecia.
Senna nos convidou para sentar também e, enquanto
saboreava um prato de macarrão, com molho branco, conversou conosco. Não havia
mais de quatro ou cinco jornalistas com ele. Tinha os cabelos longos, uma
camisa xadrez. Brincamos, entre nós jornalista, que aquela camisa se
assemelhava às das duplas sertanejas. As autênticas. Senna sempre foi muito
discreto com suas roupas. Naquele dia fugira ao seu padrão.
Sempre com o olhar distante, como se algo o
incomodasse profundamente, respondia às questões visivelmente com a cabeça em
outro lugar. "O carro deve melhorar aqui, nós o estamos entendo melhor, a
pista não é das mais onduladas e terei um pouco mais de conforto agora".
A seu pedido, Adrian Newey e Patrick Head promoveram
no pouco espaço de tempo entre a prova anterior do campeonato, no Japão, e
aquela, apenas 15 dias mais tarde, alterações no cockpit do modelo FW16. Senna
batia com as mãos nas paredes internas do cockpit quando pilotava. Mais para
frente veremos que esse fato acabou por ser determinante para o acidente que o
matou apenas três dias depois. Segundo a perícia técnica.
A porção dianteira do cockpit era impensavelmente
estreita. O regulamento da F1 na época não impunha as mesmas dimensões mínimas
de hoje, mais humanas. E Adrian Newey foi, como sempre, no limite. Ao virar o
volante, Senna esbarrava com a parte superior da mão nas laterais internas do
cockpit. Ao longo de quase duas horas de corrida aquilo era um problema. Sua
mão acabava ferida.
Piloto contorcionista
De novo conversei com Ivan Capelli, piloto do Leyton
House de 1990, também projetado por Adrian Newey. "Para entrar no carro eu
tinha de apoiar o pé esquerdo sobre o direito e somente depois de sentar
deslocar o pé esquerdo para a sua posição normal. Não havia espaço para entrar
com as pernas lado a lado."
Os mesmos princípios de reduzir ao máximo a área
frontal do carro, a fim de diminuir o arrasto aerodinâmico, ou resistência ao
ar, Adrian Newey aplicava também no FW16 da Williams. Todos os projetistas
fazem isso, verdade, mas sem levar a coisa ao limite do insuportável para o
piloto, como Adrian Newey sempre optara.
Senna estava visivelmente perturbado. Primeiro havia a
questão do duplo abandono nas duas primeiras etapas do Mundial, no Brasil e no
Japão. Contra todas as previsões. A constatação de que Michael Schumacher e a
Benetton eram adversários muito fortes e sua Williams, FW16, "um
desastre".
Não é tudo. Fora das pistas as coisas exigiam também
de Senna muita dedicação, ajudando a compor o quadro de extrema apreensão que
vivia. Ele estava investindo pesado em alguns negócios e, naturalmente, isso o
preocupava.
Investimentos grandes em várias áreas
Acabara de assinar um grande contrato com o fabricante
alemão de automóveis Audi para representar a marca no mercado brasileiro. Era
coisa de milhões e milhões de dólares e muita responsabilidade. Ao mesmo tempo
adquirira a concessionária Ford Frei Caneca em São Paulo. Seu sócio, o Bira,
estava em Ímola. Havia ainda muito que acertar sobre essas transações.
Durante o almoço de Senna no motorhome da Williams, já
próximo das quatro horas da tarde, chegou Ricardo Patrese, que abandonara as
pistas no fim da temporada anterior. A forma alegre, expansiva com que o
italiano falava com Senna, ali no nosso lado, contrastava com a postura fria,
distante do brasileiro, apesar do seu esforço em desejar expor a Patrese seu
contentamento em vê-lo.
Veremos mais à frente que o clima de tensão para Senna
cresceu tanto depois do grave acidente de Rubens Barrichello, da Jordan, no dia
seguinte, sexta-feira, e da morte de Roland Ratzenberger, da Simtek, no sábado,
que o médico da Fórmula 1, doutor Sid Watkins, chegou a conversar com o piloto,
sábado à noite, orientando-o a não disputar o GP de San Marino, o que o matou.
"Ele me disse, o que é que eu vou alegar para a
equipe, nessa situação em que estamos, 20 pontos atrás de Schumacher na
classificação? Apenas que não estou bem?" Sid Watkins nos contou, anos
depois, o que Senna lhe disse naquele dia.
O doutor Sid Watkins era um homem notável.
Neurocirurgião, criou depois da morte de Senna o FIA Institute para cuidar da
segurança da F1, dentre outros interesses. E realizou uma obra gigantesca.
Farei um texto sobre o tema, antes ainda de 1.º de maio. O doutor Sid Watkins
morreu em 2012, aos 84 anos.
No próximo capítulo vou descrever a apreensão de Sid
Watkins com relação à participação de Senna na prova. A reação do piloto ao
visitar Rubinho no Hospital Maggiore de Bolonha, sexta-feira à noite. Mais: o
choro de Senna ao saber da morte de Ratzenberger, depois do impacto do carro da
Simtek no muro da curva Villeneuve, e a incrível punição da FIA por ele ter ido
até o local do acidente.
Acidente
de Rubinho faz Senna cair no choro em Ímola
Até agora vimos que o regulamento da F-1 mudou
radicalmente naquela temporada de 1994, que o modelo FW16 da Williams de Senna
era muito difícil de ser pilotado e que nas duas primeiras etapas do
campeonato, Brasil e Aida, no Japão, o piloto, grande favorito a ser campeão do
mundo, não havia marcado um único ponto. Em contrapartida, seu principal
adversário, Michael Schumacher, da Benetton, vencera as duas primeiras etapas
da temporada.
No capítulo anterior já entramos no GP de San Marino,
onde descrevemos o clima de tensão que envolvia Senna. Pelas dificuldades com o
FW16, a falta de resultados e o seu momento pessoal, assumindo a
responsabilidade de vários e importantes negócios.
Logo depois do primeiro treino livre da prova em
Ímola, sexta-feira, Senna teve o momento de menos tensão no fim de semana. O
carro estava melhor. Adrian Newey permaneceu em regime de clausura, na
Inglaterra, estudando o que poderia fazer para poder adotar uma suspensão menos
rígida no FW16 sem, contudo, perder eficiência aerodinâmica.
"O aerofólio dianteiro é um pouco diferente e
temos uma nova geometria de suspensão dianteira", explicou o piloto. Como
não exigira tudo do equipamento, por tratar-se do primeiro treino livre, a
avaliação não era conclusiva: "Tenho a impressão de que o carro está menos
crítico", nos disse.
Mudança fatal
Senna pôde a partir daquele momento, também, trabalhar
melhor as mãos e os braços na condução. O volante do modelo FW16 havia sido
abaixado poucos centímetros e agora ele não batia mais as mãos nas paredes do
cockpit, ao lado do volante. "Ficou melhor", limitou-se a dizer
Senna. Raramente ele dava detalhes do que havia sido feito no carro. Quando ele
contou o que Adrian Newey fez no FW16 surpreendeu quem ouviu. Tudo para Senna
era "segredo estratégico".
Jamais ouvi dele qualquer coisa minimamente mais
profunda sobre o carro, as novidades, por exemplo, e sabemos que muito do seu
desenvolvimento era orientado por ele mesmo, portanto Senna conhecia como
poucos os novos componentes do seu monoposto e que objetivos tinham.
Pausa para o almoço, entre a sessão livre da manhã e a
classificatória à tarde. Naquela época havia treino de definição do grid na
sexta-feira e no sábado.
A concentração de Senna para sair daquela situação de
desvantagem diante de Michael Schumacher e da Benetton era total. Suas
declarações eram quase sempre monossilábicas, sinal típico de que estava focado
em algo maior. Senna era assim: uma série de comportamentos denunciava o que
ele buscava.
Lembro-me uma vez de ele nos contar uma história:
"Quando vocês me virem inclinando o capacete para o lado de dentro das
curvas, saibam que tanto eu como o carro estamos no limite". Outra senha
era a sua reação com poucas palavras. Se ele dissesse apenas sim ou não, ou até
nem respondesse, então alguma coisa o incomodava. Naquele GP, especificamente,
já vimos que eram muitas coisas que o perturbavam e não uma só.
Desde 1987, cubro profissionalmente as corridas de F-1
como jornalista, apesar de apenas a partir de 1991 passar a segui-las de forma
regular, indo a quase todas as etapas. Tive apenas duas chances de conversar
com Senna de forma mais profunda, informal. Abordar temas que não fossem
relativos ao automobilismo.
Uma delas foi num voo de volta de Barcelona para o
Brasil, em 1992, e a outra na temporada seguinte, em Miami, no escritório de um
amigo dele, Tony, dono de uma loja de produtos eletrônicos. Regressávamos do
Canadá. Ah, uma ocasião também na Inglaterra, em Silverstone, numa quinta-feira
de fim de semana de GP, em 1990.
Fora disso, os contatos foram sempre apenas
profissionais. Senna mantinha relações de amizade mesmo, capaz de dividir suas
intimidades, com pouca gente. Uma dessas pessoas era Galvão Bueno. No último
capítulo dessa nossa conversa, vou contar um pouco mais sobre a empatia que
existia entre Senna e Galvão Bueno. O narrador era o "papagaio",
segundo o piloto, por ele "falar demais". Mesmo numa situação por
demais triste, dentro do avião que trazia o corpo de Senna de volta ao Brasil,
ao nosso lado.
Ainda mais preocupação
O clima de apreensão para Senna no GP de San Marino
cresceu ainda mais no começo da sessão de classificação da sexta-feira à tarde.
Logo no início do treino, as imagens nas TV do circuito focalizaram um carro
com as rodas para cima, em um local ainda não identificável.
Quando um monoposto capota, há sempre uma tensão
natural pelo fato de a cabeça do piloto, apesar do "santantônio",
dianteiro e traseiro, estar exposta. Não dava para saber quem se acidentara tão
feio. O santantônio é uma barra que se destina a proteger a cabeça do piloto no
caso de capotamento. Na F1, a tomada de ar, acima da cabeça do piloto, exerce
essa função.
Em seguida, a TV expôs o VT do que se passara. Era
Rubens Barrichello, jovem piloto brasileiro de 21 anos, tido na F1 como um
talento nato àquela altura. O seu voo na Variante Baixa foi de assustar.
Desacordado, nos instantes iniciais do socorro médico, as consequências pelo
ocorrido sugeriam ser graves.
Todo mundo na F1 temia o brusco corte nos recursos
eletrônicos naquela temporada. "É um risco tornar os carros menos guiáveis
sem diminuir a potência dos motores", afirmou, na época, o ainda bem
conceituado projetista John Barnard, autor de carros campeões na McLaren e
criador de várias soluções técnicas ainda hoje empregadas na F1, como o
pioneirismo na utilização dos materiais compósitos, a exemplo da fibra de
carbono.
Aquele acidente com Rubinho levantara de imediato a
questão. Senna, como muita gente no paddock, foi até o ambulatório médico
instalado muito próximo de onde Rubinho bateu, antes do primeiro box. Eu estava
a uns 20 metros da entrada, no limite da área isolada pelos organizadores,
quando vi Senna passar por mim indo em direção aos médicos.
Sua expressão era muito tensa. Caminhava rapidamente.
O dono da equipe Jordan, o irlandês Eddie Jordan, passara por ali instantes
antes e pude ouvi-lo dizer a Geraldo Rodrigues, empresário de Rubinho, para
telefonar para o pai do piloto, a fim de avisá-lo do acidente.
Até então se imaginava que algo de mais sério teria acontecido
com Rubinho, afinal, ele bateu a cerca de 200 km/h no muro, com o carro voando
sobre os pneus. Não demorou muito, uns 10 minutos, e Senna deixou o ambulatório
rapidamente. Ele tinha os olhos visivelmente marejados.
Eu já havia vivido situação semelhante, em 1990, em
Jerez de la Frontera, quando Senna foi até a pista acompanhar a assistência
médica ao irlandês Martin Donnely, da Lotus, que sofrera o mais impressionante
acidente que já vi pessoalmente na F-1. Como na Espanha em 1990, Senna também chorou
em Ímola, por causa de Rubinho. "Por favor, me deixem passar, ele parece
que está bem, está bem", se limitou a nos falar. Estávamos na porta do
ambulatório.
O treino ficou interrompido por 22 minutos. "The
show must go on" é o lema da F1, ou seja, o "show deve
continuar", e assim foi feito. As notícias sobre Rubinho eram tranquilizadoras,
para surpresa de muitos.
Os pilotos voltaram a disputar a classificação. Fazia
calor, 28 graus. No fim da sessão, Senna conseguiu ser o mais veloz, como já
fora no Brasil e em Aida, no Japão: 1min21s548 diante de 1min22s015 de
Schumacher. "Tivemos um treino caótico, o acidente do Rubinho afetou a
todos. Não consegui dar uma única volta bem feita, quando acertava aqui, errava
ali", afirmou Senna. "No final, ser o mais veloz é ótimo, acima do
que eu poderia esperar", completou.
Senna visita o amigo no hospital
Rubinho fora transferido para o Hospital Maggiore de
Bolonha, a cerca de 50 quilômetros de Ímola, para exames mais detalhados. Senna
apressou as suas reuniões com a equipe Williams, depois da classificação, para
ir até o hospital visitar o amigo. Pouco tempo antes daquele GP na Itália,
Rubinho e Senna passaram vários dias juntos no Japão, em Tóquio, antes de
embarcar para Aida a fim de disputar a segunda prova do campeonato.
Até hoje Rubinho descreve o prazer que teve de
conhecer Senna mais intimamente naquela viagem. "Demos muita risada na
Disney", recorda Rubinho. “Foi importante para mim aquele contato, o
Ayrton era o meu maior ídolo”.
Geraldo Rodrigues, o anfitrião dos visitantes de
Rubinho no hospital, me contou à noite, quando estive lá, que Senna se
interessou em saber detalhes do estado de Rubinho e que demonstrava estar
apreensivo. O Hospital Maggiore de Bolonha é público. Rubinho dividiu o quarto
com outros dois pacientes.
Quando entrei no quarto, no início da noite, vi Senna
e fiquei surpreso com a presença desses pacientes no mesmo local. Rubinho
dormia. Tinha o rosto bastante inchado pela fratura do nariz. Liguei de um
telefone público para o Estadão, a fim de passar um texto por telefone. Não
havia onde escrever ali no hospital. Aliás, era uma concentração de pessoas
impressionantemente mal educadas. Não havia, ainda, a telefonia celular, ao
menos popularizada, e a internet era algo que na prática ainda não existia.
Imaginei, na hora, como os europeus reagiriam se, no
GP do Brasil, um piloto acidentado fosse levado ao Pronto Socorro do Hospital
das Clínicas e, depois, permanecesse em observação na enfermaria, junto de
outros doentes. Provavelmente a corrida não mais seria disputada no país.
A sexta-feira terminou para Senna ainda pior do que
começara. O acidente de Rubinho o afetara visivelmente. Pude acompanhar o seu
trabalho na Williams, depois, até onde nos é permitido chegar, na frente dessas
garagens. Com toda certeza estava abalado. Ele mesmo confessou ter cometido
vários erros na pista.
Mas se a sexta-feira foi ruim, o sábado seria ainda
pior. Roland Ratzenberger morreu ao colidir a 300 km/h com sua Simtek, na curva
Villeneuve. Se o quadro emocional vivido por Senna já era difícil, por tudo que
o cercava e o susto com Rubinho, no dia anterior, agora ganhara conotações
dramáticas.
Na
véspera da morte, gravação de Adriane Galisteu abala Senna
Talvez o momento mais marcante para mim, envolvendo
Senna naquele dia 30 de abril de 1994, sábado do GP de San Marino, foi quando o
vi abraçado, apoiado no ombro do doutor Sid Watkins, do lado de fora do centro
médico do circuito Enzo e Dino Ferrari, em Ímola. Era mais ou menos 13h50.
Naquele instante, o médico da F1 (e seu amigo pessoal)
informou a Senna e a Charlie Moody, chefe da equipe Simtek, por onde corria o
austríaco Roland Ratzenberger, que não havia nada o que se pudesse fazer pelo
piloto. Ele estava morto.
A F1 estava desacostumada a recolher seus mortos. Para
aquela geração que competia na pista, a morte representava algo possível,
lógico, mas muito distante. O último piloto a morrer em um GP havia sido o
italiano Ricardo Paletti, da Osella, na largada do GP do Canadá de 1982, em
Montreal.
Outro italiano, Elio De Angelis, perdera também a vida
na F1, em 1986, durante testes particulares da Brabham em Paul Ricard, na
França. Senna, Michael Schumacher, Mika Hakkinen, Damon Hill, por exemplo,
nunca haviam convivido com a dura realidade da morte nos autódromos.
Senna chorara já no dia anterior, naquele mesmo local,
um dos mais frequentados naquele fim de semana, o centro médico da pista de
Ímola, quando Rubens Barrichello também sofrera grave acidente. Agora, de novo,
ele estava lá. Desta vez, para algo bem pior, a perda de um colega de
profissão.
Deu para perceber, de onde estávamos, a uns 20 metros
do local, que Senna queria a todo custo entrar no mini hospital e não era
autorizado a fazê-lo. Estava supertenso, em razão de ter desembarcado de um
carro da organização da prova, segundos antes, proveniente da curva Villeneuve,
onde Ratzenberger se acidentara. Quis ir até lá ver.
O pequeno tumulto que se formou na porta do centro
médico chamou a atenção de Watkins, que, lá dentro, junto com o doutor
Baccarini, tentava, em vão, ressuscitar o piloto austríaco. Neurocirurgião, ele
já tinha o diagnóstico irreversível e deixou o mini hospital para conversar com
Senna.
Choro convulsivo
Mais tarde, ele nos diria que Senna chorara
convulsivamente no seu ombro. "Éramos amigos, pescávamos juntos, ficávamos
nas casas das respectivas famílias".
O mais incrível foi o que se passou a seguir: o belga
Roland Bruynseraede, delegado de segurança da F1 e diretor de prova, mandou
chamar Senna na torre de controle para lhe pedir explicações sobre o seu
comportamento de solicitar um carro oficial do GP para ir até o local do
acidente de Ratzenberger. Não era sua atribuição. O respeito a hierarquia na
FIA é algo que não se discute. Não há margem para nenhum diálogo. Era e é
assim.
Não pude ouvir Senna a respeito. Naquele dia, ele não
atendeu mais ninguém. Permaneceu fechado no motorhome da Williams e não
retornou à pista, apesar do treino ter prosseguido depois de o helicóptero ter
decolado, levando o austríaco para o Hospital Maggiore de Bolonha. Havia outro
helicóptero no autódromo.
Soube que Bruynseraede lhe pediu satisfações. Senna
sabia que a FIA não brinca e é dura nessas questões de manter a autoridade,
apesar da situação absurda no caso. No fim de 1989 e início de 1990, se o brasileiro
não se retratasse publicamente das acusações ao então presidente da Fisa,
Jean-Marie Ballestre, de favorecer Alain Prost na decisão do último Mundial, no
GP do Japão, em 1989, não receberia sua superlicença para disputar a temporada.
Senna, segundo a assessoria da Williams, teria
respondido a Bruynserae que, como piloto, interessava-se por compreender o que
ocorreu na curva Villeneuve com Ratzenberger, daí dirigir-se até lá.
Bruynseraede é um belga que trabalhava no autódromo de Zolder já na época em que
Gilles Villeneuve morreu, em 1982, dirigindo provas locais. Começou a trabalhar
para a FIA e, sem que ninguém soubesse ao certo como, atingiu o importante
cargo de diretor de prova, além de delegado de segurança da F1. Eu o conheço
bem. No último GP da Bélgica, em Spa-Francorchamps, por exemplo, conversamos.
É sempre bastante simpático e dei muitas voltas de
carro nos circuitos da F1 ao seu lado, com ele explicando-me muito dos
trabalhos realizados nas pistas. Esta é uma das áreas que mais me interessa nessas
competições. Mas devo confessar: é um homem sem formação técnica, acadêmica.
Aprendeu na prática e, não raro, sua falta de domínio de conceitos básicos de
física, química e matemática ficavam evidentes. Suas orientações eram puramente
empíricas.
Amadorismo na FIA
Lembro-me do GP da Hungria daquela mesma temporada,
1994. Era quinta-feira, início da tarde, eu acabara de chegar ao autódromo.
Conversava rapidamente com um pequeno grupo de jornalistas quando Bruynseraede
se aproximou.
Nós o cumprimentamos e, em seguida, sem que
esperássemos, perguntou: "Vocês também acham que eu fiz mal em deixar a
corrida seguir adiante na Alemanha?" Cerca de uma semana antes, estávamos
em Hockenheim e, ainda na primeira volta da prova, nada menos que dez carros,
dos 26 que largaram, envolveram-se num acidente.
Havia pedaços de carros para todo lado. Por sorte,
ninguém se feriu. Bruynseraede foi bastante criticado por todos por não optar
pela bandeira vermelha, interrompendo a corrida para depois haver nova largada.
Quase em coro, respondemos a ele que de fato fora um erro grave não paralisar a
competição.
Eu jamais imaginava presenciar reação de tamanha
insegurança de um delegado de segurança da F1. Não esquecerei jamais sua
argumentação frágil, despreparada, exposta a seguir para justificar a decisão
de manter a corrida com bandeira amarela. Mais: ele nos procurou
espontaneamente, o que bem demonstra suas incertezas.
Era nas mãos de indivíduos bem intencionados, como
ele, mas mal preparados, que a F1 estava naquela época. Charlie Whiting, um
ex-mecânico inglês da equipe Brabham quando Bernie Ecclestone era o seu
proprietário, o substituiria no campeonato seguinte. Whiting se mantém na
função até hoje. Seu trabalho é muito mais respeitado por todos.
Senna não voltou para a pista, assim como Michael
Schumacher, depois da interrupção da segunda tomada de tempos, ocorrida aos 19
minutos de treino, por causa do acidente de Ratzenberger. Por mais que Gerhard
Berger, da Ferrari, tentasse, não melhorou as marcas de Senna e Michael Schumacher,
registradas no dia anterior. Fiquei impressionado com a frieza de Berger, já
que Ratzenberger era austríaco como ele. O piloto da Ferrari não se deixou
atingir pela perda do amigo. Sentou no carro e acelerou tudo para ficar em
terceiro no grid.
Falta de sensibilidade
Eu me viria também impressionado com Jean Alesi,
companheiro de Gerhard Berger na Ferrari. No dia seguinte à morte de Senna,
segunda-feira, enquanto seu corpo estava no Instituto Médico Legal de Bolonha,
aguardando a liberação para ser transportado para o Brasil, o francês treinava
a 60 quilômetros dali, em Fiorano.
Alesi foi testemunha ocular do acidente de
Ratzenberger. Entre o GP do Brasil e o do Pacífico, ele sofreu um gravíssimo
acidente em Mugello, enquanto treinava com sua Ferrari 412T1, e teve fratura de
uma vértebra cervical. Por muito pouco não ficou paralítico. Aquele era o seu
primeiro treino depois do período de convalescença.
No sábado do GP de San Marino, Alesi estava no meio da
torcida. Ele ocupava um lugar na arquibancada da curva Tosa, onde parou a
Simtek de Ratzenberger depois do impacto da curva Villeneuve, a cerca de 300
km/h, o ponto de maior velocidade do circuito.
Testemunha ocular
"Vi tudo com clareza", disse Alesi.
"Ratzenberger perdeu uma parte do aerofólio dianteiro antes da Villeneuve
e ficou sem pressão aerodinâmica na frente. Quando ele iniciou o contorno da
curva, seu carro seguiu reto, colidindo em um ângulo aproximado de 45 graus no
muro, praticamente sem reduzir a velocidade em que saiu da pista. Deve ter
morrido na hora". O austríaco teve fraturas múltiplas das vértebras
cervicais, causadas pela súbita desaceleração do choque, além de dilaceramento
visceral, motivado pela mesma razão.
Ninguém conseguiu falar com Senna no restante daquele
dia. Alegando falta de condições emocionais, ele não só não falou com ninguém,
como se recusou a treinar. Frank Williams o apoiou. O período de tensão da sua
vida pessoal e as dificuldades do seu momento na F1 transformaram Senna em um
cidadão distante de tudo. Nos poucos minutos que pudemos vê-lo naquele sábado,
ele parecia longe, abatido, triste, reflexivo. Não creio que questionasse a
validade do que fazia. Senna amava pilotar e deixava isso claro.
Nesse dia, outro fator serviu também para lançar Senna
no caos emocional total. Leonardo, seu irmão, ouvimos do paddock, havia trazido
consigo do Brasil gravações telefônicas comprometedoras de sua namorada,
Adriane Galisteu. Pense só na falta de bom senso do irmão se de fato era
verdade essa história, como pareceu ser diante do que ouvimos de pessoas
próximas ao piloto.
O dia 30 de abril de 1994 de Senna no circuito Enzo e
Dino Ferrari não terminou com a sua saída do autódromo, no fim da tarde, já com
a 65ª pole position da carreira, a última. As horas que se seguiram no hotel em
que estava hospedado, na pequena cidade medieval de Doza, foram terríveis. Era
muita coisa para administrar interiormente. Lutava contra os seus demônios.
Não bastassem as questões profissionais da F1, tensas
ao extremo, com sua necessidade de resultados e, principalmente, a morte do
colega, Senna estava investindo pesado nos negócios particulares. Para
complicar, e muito, tudo, havia a história das fitas entregues pelo irmão.
Quando Adriane aparecia na F1, ele não escondia seu amor. Deve ter sido um baque
ainda mais desestabilizador saber das fitas, ainda que precisasse averiguar a
veracidade dos fatos.
1º de
maio de 1994, o pior dia na carreira de um jornalista
O domingo amanheceu ensolarado, apesar de não fazer
calor. Desde 1992 instalo-me numa pequena cidade chamada Riolo Terme. De lá até
Ímola, onde se acha o circuito Enzo e Dino Ferrari, cruzamos as montanhas dos
Apeninos, em cujas colinas são cultivadas as uvas que dão origem ao vinho San
Giovese, típico da região. Há plantações também de "plune", que são
aquelas cerejas vermelhas, grandes, e kiwi.
Logo na saída do Albergo Serena, onde eu ficava, está
o acesso a essa bucólica e sinuosa estradinha. Quando acaba, 11 quilômetros
adiante, já se encontra a curva Rivazza do circuito. Depois, é só contornar uma
quadra e entrar no autódromo. O difícil é dirigir em meio à multidão que se
aglutina para acessar o circuito. Não havia uma divisória que nos separasse dos
pedestres. O tempo perdido era enorme.
Confesso que estava bastante sensibilizado com tudo o
que ocorrera naquele fim de semana. Primeiro, o acidente do Rubens Barrichello,
na sexta-feira. Depois, a morte de Roland Ratzenberger, no sábado. Tinha a
certeza de que a proibição de quase todos os recursos eletrônicos, naquele ano,
sem diminuir a potência dos carros, os deixara perigosos, como afirmara
Barnard.
Não é tudo. Na etapa anterior, em Aida, no Japão, na
quarta-feira eu estava no autódromo japonês quando vi um carro de passeio
prestes a deixar a área dos boxes. Como sempre faço em todas as pistas,
desejava conhecer o traçado de dentro de um veículo. Eu me aproximei daquele
carro e vi que era Nick Wirth, o diretor técnico da Simtek.
Perguntei se havia carona naquela volta pelos 3.703
metros da pista e ele acenou para entrar no carro. Havia outra pessoa com
Wirth: Roland Ratzenberger. O austríaco havia disputado mais de uma temporada
no automobilismo japonês, com carros esporte-protótipo, e já havia corrido em
Aida.
Recepção cordial
Com grande simpatia, me colocou na conversa com Wirth
como se me conhecesse. Os dois falavam sobre como acertar o carro da Simtek
para o circuito. Depois de completar algumas voltas, Wirth e Ratzenberger
pararam o carro no paddock e, por outros 15 ou 20 minutos, seguimos
conversando. Entre os temas estava Senna. O austríaco se impressionara com a
forma como o viam no Brasil, um deus, não um semideus.
Pois bem, aquela pessoa afável, cortês, estava agora
morta. Aquilo gerou um impacto em mim. Meu primeiro GP como jornalista fora o
do Brasil de 1987 e, desde então, ninguém havia morrido na F1. Era uma
novidade. E o piloto não era mais um desconhecido para mim.
A iminência de novos acidentes ficara nítida. Jamais
pensei, contudo, que Senna pudesse estar envolvido em um deles. Isso não
passava pela minha cabeça. Cheguei ao autódromo pouco antes do warm up, próximo
das 9h. Sabia, desde o dia anterior, que Niki Lauda estava programando uma
reunião com os pilotos para discutir a segurança na F1.
Lauda trabalhava como conselheiro da Ferrari e
assessor especial do presidente da empresa, Luca di Montezemolo. Os dois são
amigos desde que Luca era diretor esportivo do time, em 1975, e o austríaco
ganhou o primeiro dos dois campeonatos com a equipe italiana. O outro foi em
1977.
Lauda disse a um grupo de jornalistas em que eu estava
presente: "Acho que apenas Senna pode liderar um movimento desses. Só ele
tem autoridade para falar, ser ouvido e respeitado". Senna foi para a
pista no warm up. Não disputou a classificação do sábado. O acidente com Roland
Ratzenberger ocorreu no início do treino e ele, profundamente perturbado com
tudo que o cercava, não tentou melhorar o tempo de sexta-feira. Mesmo assim,
acabou com a pole position.
O pior GP da minha carreira
Eu estava tenso. Na mesma intensidade em que fiquei em
Mônaco, na corrida seguinte, depois que, já na primeira sessão livre de
quinta-feira, Karl Wendlinger, da Sauber, bateu forte da saída do túnel e
entrou em coma.
Nunca imaginei que passaria por algo semelhante. Expôs
uma fraqueza que não imaginava existir em mim. Não podia ouvir o barulho
daqueles carros. Achava que outros iriam morrer. Afinal, na sexta-feira, em
Ímola, Rubinho quase se mata e, no sábado, Ratzenberger morreu.
No domingo, foi a vez de Senna. E já no primeiro
treino da corrida seguinte, em Mônaco, mais um piloto era dado como morto. Quer
dizer: que esporte é esse? Ganha quem sobrevive? A Roma antiga dos gladiadores,
embora fisicamente perto dali, estava 2000 anos no passado.
Voltemos ao domingo em Ímola. Vi Lauda conversar com
Senna, em pleno paddock do circuito Enzo e Dino Ferrari, a respeito do seu
plano de talvez recriar a Grand Prix Drivers Association (GPDA), entidade
criada e dirigida pelos pilotos a fim de defender os seus interesses, em
especial os relativos à segurança.
Com o abandono das pistas de Jackie Stewart, em 1973,
seu principal líder, a GPDA acabou deixando de existir. Agora, 20 anos mais
tarde, era hora de retomá-la. "Combinamos que, na quarta-feira, iremos nos
encontrar", revelou Niki Lauda, sobre a conversa com Senna.
Contou mais: "Discutiremos não só a revisão do
regulamento técnico, mas, principalmente, a segurança das pistas. Alguns muros
têm de ficar mais distantes do asfalto. Reconheço que nem sempre é possível,
como no caso aqui de Ímola, em que o muro da Villeneuve (onde se acidentou
Ratzenberger) está no limite do terreno do autódromo, a saída então é mexer nos
traçados", disse o austríaco.
Michael Schumacher, o líder do Mundial, com duas
vitórias, no Brasil e no GP do Pacífico, no Japão, também estaria presente no
encontro, segundo Lauda.
Enclausurado na equipe
Senna não conversou com nenhum jornalista, ao menos
que eu saiba. Evitou a imprensa visivelmente. Tinha a expressão fechada, mas um
pouco melhor que a de sábado à tarde. Nos raros momentos de aparição pública,
era assim que o via. Ele ficou a maior parte do tempo daquela manhã dentro do
motorhome da Williams, reunido com Adrian Newey e seu engenheiro de pista, o
inglês David Brown. Já que não dava para não disputar a corrida, como ele
chegou a pensar, por tudo o que o atormentava, o jeito, então, era fazer da
melhor forma possível.
Uma nova vitória de Michael Schumacher deixaria a
situação insustentável. O alemão já tinha 20 pontos e ele, nenhum. O doutor Sid
Watkins, médico da F1, chegou a orientar Senna, sábado à noite, para que não
corresse. "Alguém tão fora de si como ele, homem tão sensível, com boas
razões para isso, não poderia submeter-se às exigências de uma corrida de
F1", revelou Sid Watkins anos depois.
Eu vi Senna pela última vez quando ele se dirigia do
motorhome da Williams para o box da equipe, cerca de 40 minutos antes da
largada. De novo, trazia a tensão do fim de semana e da sua vida pessoal.
Normalmente, eu caminho pelo grid naquela meia hora em que os pilotos
estacionam seus carros na posição em que irão largar.
Naquele dia, fui direto para a sala de imprensa,
àquela época a mais apertada da F1, ao lado da existente no circuito Gilles
Villeneuve, em Montreal. Minha posição na sala era próxima da parede de vidro
em que se podia ver a passagem dos carros. Eu os via desde a saída da chicane
que antecede a linha de chegada até pouco antes do local onde Senna perdeu o
controle do carro, na Tamburello.
A maior parte do tempo, contudo, acompanhamos a prova
pelas imagens de TV. Dispomos de mais ângulos que o selecionado para chegar à
casa de quem assiste à corrida pela TV. Eu estava tenso. Até hoje, nas largadas
não me sinto muito à vontade. É o instante de maior risco de acidente na F1.
Mesmo sabendo que os pilotos são homens fazendo o que
desejam e têm consciência dos riscos, confesso que temo muitas vezes por uma
pancada violenta, em especial com aqueles com quem me relaciono bem
profissionalmente – sem desmerecer os outros, por favor.
Histórico preocupante
No caso do GP de San Marino, havia o agravante do
histórico daquele ano. Primeiro, o finlandês Jirki Jarvi Lehto, da Benetton, em
janeiro, se acidentou na curva Stowe, em Silverstone, e teve fratura de
vértebra cervical. Não correu as duas primeiras etapas do Mundial e estava de
volta naquela prova.
Depois, foi a vez de ocorrer o mesmo com Jean Alesi,
da Ferrari, em Mugello. Nicola Larini o estava substituindo em Ímola. Além de
Rubinho, que se arrebentara na sexta, e Ratzenberger, que morrera no sábado. O
que não aconteceria, então, nas 58 voltas do GP de San Marino, cujo circuito
tinha pontos de altíssima velocidade, em curva, como a Villeneuve e a
Tamburello?
posição
dos pés de Senna já mostravam que acidente era grave
Em 1953, o italiano Giuseppe Farina perdeu o controle
da sua Ferrari 500 na 30ª volta do GP da Argentina, em Buenos Aires, e matou
nove espectadores. Em Monza, em 1961, o alemão Wolfgang von Trips acabou
provocando outra tragédia.
Ele estabelecera a pole position com sua Ferrari 156.
De repente, antes da curva Parabólica, na primeira volta do GP da Itália, a
Ferrari tomou a direção das arquibancadas. Von Trips, que podia ser campeão do
mundo naquela prova, morreu. Outros 13 torcedores também perderam suas vidas.
E, nas 24 Horas de Le Mans de 1955, a Mercedes do francês Pierre Levegh voou na
direção das arquibancadas e matou 84 pessoas.
Quem gosta de automobilismo sabe que esporte a motor
sempre envolve riscos. Na nossa credencial permanente, distribuída pela FIA,
está escrito exatamente isso. Mais: se acontecer algo conosco no autódromo, a
responsabilidade não é da entidade.
A largada do GP de San Marino ainda não fora dada e já
havia um morto na história: Roland Ratzenberger, no sábado. Recapitulando: nove
em 1953 na Argentina, 14 na Itália em 1961 e 84 em Le Mans, em 1955. A grande
diferença é que meu conhecimento daquelas provas resumia-se à literatura
específica. Em Ímola, 1994, eu vivia as tragédias pessoalmente. Uma morte,
portanto, tinha um peso enorme. E o piloto em questão não era um completo
desconhecido.
Como escrevi no capítulo anterior, Jirki Jarvi Lehto
não disputara as duas primeiras etapas da temporada por ter se acidentado, com
gravidade, na curva Stowe, em Silverstone, na pré-temporada. Ele era o companheiro
de Michael Schumacher na Benetton. No sábado, no fim da tarde, conversei com
ele.
Ratzenberger já tinha morrido. "Eu tive muita
sorte". Disse Jarvi Lehto. Ele sofreu fratura de duas vértebras cervicais
e, por milagre, a lesão óssea não se estendeu até a medula nervosa, que corre
por dentro das cervicais. Se isso tivesse ocorrido, estaria paralítico.
Ele abaixou a cabeça, lançou os cabelos louros para
frente, e expôs a região posterior do pescoço, para que eu pudesse ver a
cicatriz da cirurgia a que foi submetido. Era um corte impressionantemente
longo e largo. Eu tinha bagagem: sou ex-estudante do curso de Medicina
Veterinária da USP e também fotografei algumas cirurgias humanas, como
transplantes de rins. Mesmo assim, me impressionei com a enorme cicatriz no
pescoço do piloto.
Um novo impacto poderia matá-lo facilmente. E o fim de
semana vinha cheio de prenúncios sinistros. Esse era apenas mais um dado que
gostaria de registrar para explicar o que vem adiante.
Já na largada quase outra tragédia
14 horas: Roland Bruynseraede autoriza a largada da
corrida. O público é excelente, como de hábito na Itália. Jyrki Jarvi Lehto,
quinto no grid, não larga. O motor Ford da sua Benetton morreu. Uma parte do
pelotão consegue desviar, mas sua posição é na frente no grid.
O português Pedro Lamy, com uma Lotus, acerta em cheio
a traseira da Benetton, parada na pista. Uma roda da Lotus voa na direção da
arquibancada e atinge vários torcedores. Com carros e detritos para todo lado
no asfalto, o diretor de prova ordena a entrada do safety car na pista.
Senna lidera a corrida, seguido por Michael
Schumacher. Da sala de imprensa, onde estava, temia pela vida de Jarvi Lehto e
das pessoas que receberam o impacto da roda da Lotus de Lamy. Dá para
compreender como todos que estavam no autódromo viam seus temores crescerem a
cada instante? Estávamos sensibilizados com os acidentes da pré-temporada,
envolvendo o próprio finlandês e Jean Alesi. E, desde a sexta-feira, os
problemas se sucediam sem parar.
De novo, conversávamos entre nós, jornalistas, que
John Barnard, projetista da Ferrari, estava com a razão: retiraram a eletrônica
embarcada e não reduziram a potência, deixando os carros inguiáveis.
Nós esperávamos por outras más notícias. E ela veio
mais cedo do que supúnhamos.
Os carros passavam a minha frente. Da janela da sala
de imprensa à pista não havia mais de 20 metros. O safety car liderava o corso,
com Senna em primeiro e Michael Schumacher em segundo. O safety car, naquela
época, era um veículo de série, sem maiores preparações.
A velocidade com que percorria o circuito pouco tinha
a ver com o mínimo exigido pelos carros de F1 para manter a temperatura dos
pneus e dos freios num valor mínimo aceitável para quando a corrida fosse
reiniciada. Hoje, o safety car é um Mercedes SLS AMG, com motor de 591 cavalos,
superpreparado para o que a F1 exige. E sempre conduzido pelo mesmo piloto, o
alemão Bernd Maylander.
Relargada
No fim da quinta volta do GP de San Marino, o safety
car deixou a pista e a corrida foi reiniciada. Vi a traseira da Williams de
Senna raspando o asfalto com violência poucas vezes vista. Lançava fagulhas do
contato dos discos de metal da prancha sob o assoalho com o solo. Compreendi
que a baixa velocidade do safety car fez com que a pressão dos pneus da Williams
caísse perigosamente.
Senna passou por onde me encontrava, pouco depois da
linha de chegada, local da sala de imprensa, abrindo a volta depois da saída do
safety car, com Michael Schumacher sempre bem próximo.
Eu o vi passar e, quando saiu do meu campo de visão,
voltei-me para o aparelho de TV a minha frente, quando já estaria contornando a
Tamburello, a primeira curva. A imagem que surgiu já mostrou a Williams
seguindo reto pela tangente da velocíssima curva, contornada com o acelerador
no curso máximo, em sexta marcha, a pouco menos de 300 km/h.
Lembro de ter visto a hora no terminal de computador
que nos repassa uma série de informações das atividades de pista. 14 horas e 17
minutos, sexta volta do GP de San Marino, a primeira desde a relargada da prova.
Estou redigindo quase tudo de memória. Pode ser que tenha sido na segunda volta
depois de o safety car deixar a pista.
Curiosamente, ao entender que Senna iria colidir no
muro, a primeira coisa que me veio à mente foi que aquela seria outra etapa sem
marcar pontos. Repare que a noção de um Senna imortal estava incrustada também
em mim. Eu tinha consciência de que ele iria se chocar em alta velocidade, mas
em nenhum instante imaginei que pudesse se ferir. Ao menos, não gravemente.
A imagem seguinte que nos foi oferecida pela TV
italiana era já a da Williams desacelerando depois do impacto no muro. Epa!
Pensei. Bateu forte mesmo. Enquanto o carro ainda se arrastava no cimento
branco da área de escape da Tamburello, eu tentava identificar o estado do cockpit,
verificar se o santantônio estava inteiro. Enfim, qualquer dado que me
permitisse formar uma ideia da gravidade do acidente.
Quando a Williams parou, com Senna inerte dentro, e
ele deu aquela pequena mexida na cabeça, imaginei que não se tratava de um acidente
fatal. Ao contrário, não sei se por desejar que ele estivesse bem, naqueles
segundos tinha a impressão de que Senna teria se ferido sem maior gravidade.
Mas, ao rever o acidente, logo em seguida, pude
compreender que o elevado ângulo de impacto da Williams no muro e a distância
percorrida desde o choque até a imobilização sugeriam ter havido uma
desaceleração violenta, maior perigo nos acidentes. Identifiquei ao mesmo
tempo, porém, bons sinais. O cockpit parecia inteiro, bem como o santantônio atrás
e acima da cabeça do piloto.
A dura verdade emerge
Tudo começou a mudar quando vi o pessoal do regaste e
os médicos abrirem um lençol branco a fim de impedir a obtenção de mais imagens
do atendimento ao piloto. Isso sempre é um indicativo de sérios ferimentos.
O quadro se complicou ainda mais ao ver sangue no
chão. Não estava certo se vinha de uma hemorragia ou de traqueostomia, para
permitir que Senna respirasse melhor. Mais: os pés de Senna, deitado no chão,
estavam por demais abertos. Se eles fossem os ponteiros de um relógio, formavam
quase o horário 15 para as 3 horas. Tinha a certeza de que ele estava
inconsciente.
Relógio da vida
Quando o piloto mantém os dois pés na posição 10 para
as 2 ou cinco para a uma, em geral é um bom sinal (ou menos ruim). Senna estava
no estágio mais avançado do "relógio da vida", 15 para as 3.
Nesse instante, saí da sala de imprensa e fui até a
saída de boxe, de onde poderia atingir, por fora, cerca de 300 metros adiante,
o local do acidente na Tamburello. Mas os comissários haviam bloqueado a
passagem. Permaneci lá uns cinco minutos, acompanhando tudo através das imagens
de TV instaladas nos boxes da Minardi. Fiquei ali para ver se não me deixavam
mesmo passar. Na Itália, nem tudo é "pão, pão, queijo, queijo".
Angelo Orsi, um velho amigo da família de Senna,
fotógrafo da revista Autosprint, com quem converso regularmente, voltava do
local da batida. "Ele está mal, mal, perdia muito sangue pela
cabeça", foram suas primeiras palavras. Levei um susto. Pela primeira vez
compreendi que o caso era mais grave do que pensava.
Ao cair em mim, corri para a sala de imprensa a fim de
pegar meu computador, a bolsa e me dirigir, de novo, para o Hospital Maggiore
de Bolonha, um velho conhecido. Eu já estivera lá na sexta-feira à noite, para
visitar o Rubinho, no sábado, para ter mais notícias sobre Roland Ratzenberger,
embora já soubesse que ele falecera. Agora, no domingo, repetiria os cerca de
50 quilômetros que separam o autódromo do hospital. Para algo inacreditável:
descobrir se Senna iria sobreviver.
Eu estava revoltado. Depois de tantas desgraças, a
próxima era previsível. Não sei se por inocência, comecei a achar que a corrida
não deveria ser disputada. Alguma coisa estava errada e, quem sabe, Barnard
estivesse certo demais. Já de posse das minhas coisas, caminhei rápido até o
estacionamento da imprensa, ao lado da curva Rivazza.
Vocês querem matar mais um?
Na hora em que estava abrindo a porta do meu carro,
ouvi o ronco ensurdecedor dos motores dos monopostos de F1 passando por ali,
bem próximo de onde estava, ainda atrás do safety car. Seria dada uma nova
largada, sem Rubens Barrichello, sem Roland Ratzenberger e sem Senna. Ainda
hoje reflito sobre o meu comportamento naquele instante. Lembro de ter gritado
para alguém, sei lá quem, pois estava realmente atingido com a sequência de
tragédias: Vocês querem matar mais um?
Mas, apesar do meu protesto, lá no fundo ainda tinha
elevadas esperanças de chegar no Hospital Maggiore e receber a notícia de que
Senna estava sendo operado, seu estado era grave, mas não irreversível.
Logo depois de estacionar o carro, entrar no Hospital
Maggiore e acessar o 11º andar, onde estava o Centro de Terapia Intensiva
(CTI), levei um grande baque. Precisei sentar para me recompor.
O médico que atendera Senna no helicóptero que o
transportou do autódromo para Bolonha tirou de mim qualquer esperança de vê-lo
vivo novamente. Seu relato é impressionante. Todos os detalhes das longas e
sofridas horas no hospital estarão no próximo capítulo.
O
acidente e a morte de Senna em detalhes que você nunca viu
Não vi nada de diferente na rotina do hospital quando
cheguei. Imaginava que haveria gente por todo o lado a fim de acompanhar uma
eventual cirurgia em Senna. De imediato, compreendi que eu chegara bastante
cedo ao hospital, a ponto de entrar no edifício e não ver um único jornalista.
No fim de uma rampa que dá acesso a um saguão central, para onde todos se
direcionam ao entrar no hospital, vi a primeira manifestação de que Senna
estava lá.
Um policial, um Carabinieri, estava agitadíssimo.
Alguém acabara de lhe dizer que o piloto se acidentara e há pouco havia chegado
ao hospital, transportado de helicóptero. Ele tinha o chapéu na mão e dizia:
"Meu Deus, o que é isso, não existe mais piloto como Senna, que corre com o
coração".
Eu o ouvi enquanto entrava rapidamente no saguão
principal, atrás de notícias. Estava mais tenso ainda. Mas ali não havia jeito.
Se eu falhasse, provavelmente comprometeria o restante da minha carreira
naquilo que tanto me dedicara para conseguir, ou seja, cobrir o Mundial de
Fórmula 1 para a grande mídia brasileira. Cada vez que me lembrava disso
ganhava força para deixar de lado minhas emoções.
Parei de pensar também nas reações que estavam
ocorrendo no Brasil por conta do acidente de Senna, o que colaborou para eu me
controlar.
Nesse momento, vi Roberto Cabrini, repórter da TV
Globo, com quem sempre tive boa relação profissional, e, um pouco mais tarde,
Celso Itiberê, o correspondente do jornal o Globo em Milão.
No Brasil, era domingo de manhã. Lembro-me de ter
ligado para os jornais em que trabalhava, Estadão e Jornal da Tarde, além da
Agência Estado, a fim de informar ao chefe de reportagem, Castilho de Andrade,
que havia deixado o autódromo e me encontrava no hospital.
Eu pensei comigo: se Senna morresse, todas as atenções
estariam lá na Itália, ao menos até o embarque do corpo para o Brasil. Eu
estava sozinho, seria o responsável por levar aos leitores dos jornais da
empresa um painel de informações de tudo. Era uma grande responsabilidade.
Isso fez eu me concentrar quase doentiamente no meu
trabalho. Ao mesmo tempo, comecei a elaborar uma estratégia de cobertura. As
notícias estariam no hospital, mas também no autódromo. Era imprescindível
ouvir Frank Williams, dono da equipe de Senna, Patrick Head e Adrian Newey, os
homens que assinaram o projeto do modelo FW16 pilotado por Senna.
Médicos realmente profissionais
Não encontrei no hospital um único cidadão que tivesse
um mínimo de sensibilidade com o que estava se passando: um piloto de F1, ídolo
em dezenas de países, mesmo na Itália, lutava para viver e os funcionários do
hospital continuavam sendo mal-educados, grossos e desinteressados, mesmo com
quem falasse em italiano com eles, como eu.
O que faltava de bom senso a essas pessoas sobrava nos
médicos deslocados para o atendimento. Todos solícitos e não escondendo nenhuma
informação. Fomos orientados a não subir ao 11° andar, mas era impossível
atender o pedido do hospital. A notícia estava lá.
E eu não errei ao decidir pagar para ver. Logo que sai
do elevador, encontrei um médico com roupas usadas no centro cirúrgico. "O
senhor veio lá de dentro, viu o Senna, pode me dizer alguma coisa?",
perguntei, meio afobado, primariamente, imaginando ouvir um desaforo.
Para a minha surpresa, nada disso ocorreu. Descobri
tratar-se do doutor Servadei, um dos que atendeu Senna ainda na pista e o
acompanhou, no helicóptero, até o hospital. Apesar de profissional, ele estava
abalado. Com voz baixa, começou a descrever o que vivera naquela última hora.
Ele é quem fala: "Antes mesmo de retirar o
capacete, ficamos impressionados com a quantidade de sangue que o piloto
perdia. Alguma artéria havia sido atingida com certeza e minha primeira
preocupação era, uma vez exposta a cabeça de Senna, tentar conter a hemorragia.
Quem orientou a complexa retirada do capacete foi o doutor Sid Watkins, o
médico da FIA. Mas tão logo tivemos acesso a sua cabeça, sem o capacete e a
balaclava, compreendi que Senna não sobreviveria", disse-me o doutor
Servadei.
"Vimos que a base craniana estava aberta e ele
perdia massa cefálica, cérebro, pelo corte de mais de um centímetro de largura
que corria por trás das orelhas, de lado a lado da cabeça. Para mim, ele havia
batido a cabeça no muro da curva Tamburello, em alta velocidade. Isso explicava
aquele traumatismo generalizado da caixa craniana".
Depois de ouvir aquilo, estava claro para mim que não
havia mais o que fazer. A morte de Senna era uma questão de tempo. Pouco tempo.
Lembro-me de ter procurado um lugar para sentar e dizer a mim mesmo que aquilo
era verdade. Eu estava em choque.
Nesse instante, passou um cidadão que, educadamente,
me informou que os médicos do caso falariam no centro de conferências do
hospital, no térreo. Profundamente abatido, sem saber o que pensar, fui para lá,
sempre transportando o meu bloco de anotações e o velho computador laptop
Toshiba 1000, uma peça de museu se comparado aos que uso hoje.
Atrás da mesa do centro de conferência ficaram, de pé,
o doutor Domenico Cosco, a doutora Maria Tereza Fiandri, o doutor Andreolli,
neurocirurgião, o doutor Servadei e o doutor Gordini, anestesista.
Não há nada que possamos fazer
O primeiro a falar foi Andreolli, que descreveu o
quadro como o mais traumático possível. "Não existe uma área específica do
crânio que podemos atuar para a reparação, tudo foi danificado no acidente. O
traumatismo é generalizado, bem como os danos a todo o tecido nervoso",
explicou.
Entre a minha conversa com o doutor Servadei, no 11°
andar, e o início da conferência houve um intervalo de uma hora. Já haviam
muitos repórteres no hospital para acompanhar o caso. Na sala de conferência,
pude observar até mesmo doentes de pijama, internados, que sabiam da internação
de Senna em estado de emergência. Desejavam mais notícias.
A consternação pelo anunciado pelo doutor Andreolli
foi impressionante. As pessoas tomaram consciência de que Senna, ídolo de tanta
gente, aquele que parecia imortal, morreria no máximo em questão de horas.
Entrei em contato com o nosso chefe de reportagem para informar o que já
apurara e o que viria pela frente.
Como eu teria de escrever um volume respeitável de
textos naquele dia, Castilho sugeriu que eu já enviasse o primeiro com o que
tinha até então. Achei prudente. Sentei numa das cadeiras da sala de
conferência e conectei meu laptop em uma tomada que descobrira ali, próximo da
mesa dos médicos, que já haviam deixado o local.
Comportamento irracional
Nesta hora, apareceu um cidadão, daqueles imbecis que
há pouco citei, dizendo que não poderia ficar lá. "Vou fechar esta
sala", disse, com a maior agressividade pensável. Eu lhe pedi que me desse
uns 50 minutos para redigir um texto. Isso em nada alteraria a rotina do
hospital. Outros jornalistas também manifestaram a necessidade de trabalhar.
Quase sem olhar para nós o indivíduo foi até o painel
de controle de luzes da sala e nos ameaçou, com a mão nas chaves elétricas: se
não saíssemos de lá naquele instante desligaria a luz do ambiente. Fechei meu
laptop e fui embora.
Fui procurar o doutor Servadei novamente, o do
helicóptero, que tão gentil se mostrara. Por sorte, o encontrei numa sala do
térreo. Ele me deu mais detalhes: "A hemorragia que Senna tinha ainda na
pista era tão violenta que durante o voo nós lhe demos litros de sangue".
Ele também falou da perda de liquor, líquido cefalorraquidiano existente entre
as camadas nervosas, a fim de protegê-las.
"Em decorrência da desaceleração sofrida pelo
cérebro, Senna perdia massa cinzenta e liquor, o que começou a deformar
rapidamente suas feições".
Toda vez que essas camadas são rompidas, o liquor,
mantido sob elevada pressão entre elas, se espalha pelas cavidades que
encontra, causando o inchaço de todos os tecidos. Em outras palavras, a cabeça
de Senna estava se deformando rapidamente, ganhando volume.
Vida vegetativa
O doutor Gordini, o anestesista, próximo ao doutor
Servadei, contou-me também outra passagem durante o voo de helicóptero até o
Hospital Maggiore: "Senna teve uma depressão respiratória importante. Nós
administramos drogas que reverteram o quadro. Mesmo que ele não tivesse sofrido
todos os estragos no cérebro, decorrentes do impacto no muro, só aquela
depressão já lhe teria causado danos irreversíveis no tecido nervoso. Ele teria
apenas vida vegetativa. Seu cérebro recebeu pouco oxigênio durante um tempo
precioso. No CTI, Senna chegou a ter uma parada respiratória. De novo, nós o
reanimamos".
Observe que em nenhum momento os médicos falaram em
afundamento do frontal, causado por algum componente do carro que se projetou
na direção da cabeça no momento do impacto. Hoje, acredita-se que a barra que
conecta a manga de eixo da suspensão dianteira direita ao conjunto
mola-amortecedor, denominada push-rod, se soltou no choque do Williams no muro
e se deslocou na direção do capacete de Senna.
A seguir a barra perfurou a viseira e pressionou a
cabeça do piloto contra a parte de trás do cockpit. Essa compressão é que teria
causado a fratura da base do crânio, descrita pelo doutor Servadei. A barra
atingiu antes a artéria temporal, gerando a forte hemorragia.
Recapitulando: pouco antes das 16 horas eu já estava
no Hospital Maggiore e conversava com o doutor Servadei, na porta do CTI. Às
16h30 a doutora Fiandri anunciou, no centro de conferências do hospital, que o
neurocirurgião, doutor Andreoli, falaria sobre o estado de Senna. Ficamos
sabendo que não havia como intervir cirurgicamente e que a morte era uma
questão de horas.
Depois, voltei a falar com os médicos presentes no
autódromo e eles me deram mais informações do atendimento. A doutora Fiandri,
que se tornou uma espécie de porta-voz do grupo médico, nos avisou que só se
pronunciaria se tivesse "alguma novidade".
Às 17h55, ela surge novamente no saguão principal do
hospital, na porta do pronto-socorro. A esta altura, o hospital não mais
permitia o acesso ao 11° andar, onde estava Senna, no CTI.
Morte cerebral
A doutora Fiandri estava visivelmente emocionada. Uma
multidão de repórteres se aproximou para ouvi-la. Não se manifestou até que o
silêncio foi feito. Eu estava ao seu lado. Com a voz embargada, a médica
afirmou: "Senhores, o eletroencefalograma de Senna não acusa mais
atividade elétrica". Deu uma pausa. Parecia estar se recompondo.
"Senna tem morte cerebral". Saiu em completo silêncio, devagar.
Os profissionais de imprensa que permaneceram no
autódromo, a esta altura, com o fim da corrida, já estavam no hospital. Para a
maioria, aquele foi o primeiro contato com os médicos que cuidavam de Senna. A
notícia causou comoção em todos. Quem estava lá já sabia que o desfecho do caso
seria aquele.
Uma disputa intensa pelos telefones públicos seguiu. A
telefonia celular de longa distância estava apenas começando. Não me lembro de
ver alguém com celular na época.
O comunicado da doutra Fiandre informava, no fundo, a
morte de Senna. Seu coração continuava batendo, mas não por muito tempo. Vi
pessoas chorando, entre eles jornalistas muito emocionados também. Eu ainda não
chorara, talvez por conta daquele preparo a que me submeti, dizendo a mim mesmo
que, ao menos enquanto estivesse ali, atrás de informações, mantivesse a
situação sob controle. Mas estava abalado, sem dúvida.
Todos nós, jornalistas, precisávamos nos comunicar com
nossas bases, para, de novo, informar o andamento das notícias. A doutora
Fiandri, por exemplo, disse que só voltaria a falar com a imprensa às 21 horas
ou se "tivesse alguma novidade". Isso depois de anunciar a morte
cerebral do piloto, às 18h05.
A verdade crua e dura
Às 19h05, ela surgiu de novo, proveniente do
pronto-socorro. Não era onde estava o piloto. Com os olhos marejados,
claramente havia chorado, falou em voz pausada, carregada de emoção, enquanto
não se ouvia um ruído sequer a sua volta, apesar da presença de centenas de
jornalistas. Todos precisavam ouvir para acreditar.
"Senhores, por favor...(tempo para respirar
fundo). Desde as 18h40, Senna não registra mais atividade cardíaca",
afirmou. Nova pausa. Ninguém se manifesta, silêncio absoluto. A doutora Fiandri
sugere ter algo mais a dizer e todos se mantêm ao seu redor. Com os olhos
cheios de lágrimas, afirma delicadamente: "Senhores, Senna está morto".
como
Galvão me ajudou a preservar detalhes do corpo de Senna
O que aconteceu depois das 19h05, hora em que a
doutora Fiandri anunciou, oficialmente, a morte de Senna, no Hospital Maggiore
de Bolonha, foi impressionante. A imprensa do mundo inteiro, instalada no
hospital, precisava passar a informação para seus veículos de comunicação.
Neste capítulo, viajaremos das dificuldades de se
enviar detalhes do ocorrido ao momento de espera da liberação do corpo para o
Instituto Médico Legal da cidade, passando pela descrição da chocante aparência
física de Senna, no centro de recuperação.
No Hospital Maggiore havia, no térreo, próximo à porta
do Pronto Socorro, onde a doutora Fiandre comunicava regularmente o andamento
do estado de Senna, apenas quatro telefones públicos. Eles eram disputados
pelos profissionais de imprensa e até por cidadãos que estavam lá por outras
razões.
Para mim, o uso do telefone naquele instante não era
imprescindível. Eu poderia mais tarde conversar com o nosso chefe de reportagem
e combinar as matérias que eu enviaria. Havia cinco horas de diferença a meu
favor entre o horário de Bolonha e o de São Paulo. Assim, enquanto na Itália
nos aproximávamos das 20 horas, na redação do jornal não era ainda 15 horas.
O que mais me incomodava àquele altura era como obter
notícias do autódromo Enzo e Dino Ferrari, já que tão logo Senna se acidentou
eu deixara Ímola para acompanhar a tentativa de recuperá-lo no hospital, em
Bolonha. Além disso, não havia um único local onde se pudesse sentar e escrever
um texto no hospital.
Eu não estava satisfeito com o que tinha para
escrever. Seria tudo muito descritivo. E eu dispunha de tempo para apurar algo
novo.
Cerca de uns 15 minutos depois de a doutora Fiandre
anunciar a morte de Senna, eu estava próximo dos elevadores que davam acesso ao
11.° andar, onde estava seu corpo. Eu sabia, por exemplo, que o irmão do
piloto, Leonardo, estava lá, junto de Galvão Bueno e Betise Assumpção, a
assessora de imprensa de Senna, além de Celso Lemos, diretor da Senna Promoções.
Seria bastante importante, do ponto de vista
jornalístico, ouvi-los, se possível. Eles viveram aquelas horas de angústia que
antecederam a morte de um herói nacional, do seu relacionamento próximo.
Padre dá a extrema-unção
Enquanto aguardava o elevador, consciente de que me
barrariam para acessar ao 11.° andar, conforme já nos haviam informado, um
padre de barba longa e branca, baixinho, de idade já avançada, batina
franciscana, quase uma caricatura, deixou um desses elevadores. Estava
acompanhado de um senhor com idade próxima dos 50 anos. Desconfiei que eles
vinham exatamente do local que eu desejava atingir, o CTI.
Padre, por favor, de onde o senhor vem?', perguntei.
"Sou o padre Amadeo Zuffa. Vim de Ímola para dar
a extrema-unção a Senna. Hoje, 1º de maio, é dia de São José da Boa Morte,
protetor dos moribundos, e desejava lhe oferecer a alma de Senna",
disse-me o padre.
No dia 1° de maio do ano seguinte, o mesmo padre
Amadeo Zuffa rezou uma missa no local do impacto da Williams, na curva
Tamburello, mas pelo lado de fora do autódromo, para lembrar a passagem do
primeiro ano da morte do piloto. Eu também estava lá, em meio a uma ribanceira
limitada pelo rio Santerno, junto de algumas centenas de pessoas. Mas esse é
outro capítulo da história.
Conforme mencionara, o padre estava acompanhado de
outra pessoa que não quis se identificar. Ele falou: "Estou aqui apenas
para acompanhar o padre, que não pode dirigir e se deslocar sem alguém para
assessorá-lo". Tão logo o padre me disse o que estava fazendo no hospital,
esse cidadão começou a falar sem parar.
"Senna estava sozinho, numa sala dotada de muitos
aparelhos, típica desses centros de recuperação. Ficamos profundamente chocados
com o que vimos", disse. Prosseguiu: "Senna estava nu, apenas com uma
toalha pequena sobre a genitália. Para se ter uma ideia do que desejo dizer, eu
e o padre não o reconhecemos. Soubemos que era Senna porque um médico nos disse
que aquele era o paciente que procurávamos. Seu rosto estava irreconhecível.
Sua cabeça ficou do tamanho de uma bola de basquete. Enquanto o corpo não
apresentava nenhuma lesão aparente e estava branco, sua cabeça tinha a cor
quase negra e estava desfigurada".
De fato, o doutor Servadei me explicara que quando o
traumatismo craniano é profundo, como no caso de Senna, em geral há o
rompimento das camadas nervosas, gerando o quadro descrito pelo acompanhante do
padre.
Minutos de fama
Não contente em conversar comigo, o cidadão passou a
contar, com entusiasmo, a outras pessoas, o que havia visto momentos antes no
11º andar. Eu o procurei e pedi para que parasse com aquele circo. Ele se
sentia o centro das atenções, por ter detalhes daquilo que todos desejavam
saber, ou seja, o estado em que se encontrava Senna.
Galvão Bueno e Betise Assumpção saíram do elevador nesse
instante. Estávamos eu, o padre e o tal indivíduo no hall dos elevadores do
hospital, no térreo. Leonardo Senna dirigiu-se a outro setor do hospital, a fim
de liberar o corpo do irmão para o Instituto Médico Legal. Segundo Galvão
Bueno, ele já estava um pouco recomposto do choque.
"Acabou, acabou", disse Galvão Bueno,
bastante abalado, mas sem chorar. Betise Assumpção tinha os olhos inchados.
Avisei ao Galvão o que o acompanhante do padre continuava fazendo. Dirigimos-nos
a ele e pedimos de novo que parasse de apresentar o seu show. Cada um tem o
direito de dizer o que bem entende, mas naquele caso o que o cidadão pretendia
era ser notícia. Ele entendeu nossa argumentação, recolheu o padre Amadeo Zuffa
e, imagino, retornaram para Ímola.
Perguntei ao Galvão Bueno quem estava na antessala do
CTI. Ele me informou que a única pessoa da F1 que passou por lá foi Gerhard
Berger, grande amigo de Senna. O piloto austríaco entrou e saiu por uma porta
lateral do hospital, não passou pelo saguão central, e ninguém o viu.
Gerhard Berger pensou em parar
Tempos mais tarde, numa conversa com Gerhard Berger,
ele me confirmou ter visto Senna no CTI e que aquilo o fez pensar se valia
mesmo a pena continuar correndo.
Por mais incrível que possa parecer, ninguém da equipe
Williams apareceu no hospital para acompanhar, de perto, o drama do piloto da
equipe. Soube, através de Galvão Bueno, que Frank Williams havia telefonado
para lá, depois da corrida terminada, para ter mais informações de seu
"amigo".
Eu já tinha o que escrever. Ao menos em relação ao que
se passou no hospital. Depois, pensaria no autódromo. Precisava, agora, de um
local para redigir e um telefone para enviar o texto pelo modem do meu velho
Toshiba 1000.
Saí do hospital e comecei a procurar um hotel nas proximidades.
Eu pagaria uma diária, escreveria minha reportagem, a mandaria para a redação
e, em seguida, iria para o autódromo, em Ímola, distante cerca de 50
quilômetros de Bolonha. Eu não tinha nenhuma informação da repercussão da morte
de Senna no meio da F1.
Não se esqueçam, internet não existia!
Custou para eu fazer a atendente do hotel entender que
precisava conectar meu computador à linha telefônica. Existia ainda naquela
época um enorme receio de que os computadores conectados à linha telefônica
pudessem fazer ligações sem que o hotel as controlasse. E, acredite, poucos as
autorizavam.
Precisei me desdobrar para a moça da recepção do hotel
desbloquear a linha telefônica do meu quarto. Ah, ia esquecendo: os cartões de
crédito internacionais, ao menos para os brasileiros, era uma novidade que há
pouco apenas se estabelecera no país. Pagávamos tudo com dinheiro.
Não foi difícil redigir os vários textos que enviei
para a redação depois de viver momentos intensos no Hospital Maggiore. As
palavras fluíam naturalmente. Liguei para São Paulo, confirmei a chegada dos
textos, paguei o hotel e me dirigi para o autódromo.
Autódromo seguiu sua rotina
Cheguei lá por volta das 22h30, se bem me lembro. Era
grande o número de jornalistas que ainda trabalhava, mas obviamente não havia
mais ninguém das equipes ou dirigentes da F1. Os que desmontavam os motorhomes,
funcionários dos times, desenvolviam suas atividades normalmente. Para alguém
que chegasse de fora e não soubesse da tragédia, sequer desconfiaria que
naquela pista, horas antes, a F-1 havia perdido talvez o maior piloto que o
mundo conheceu.
Vi, no fundo da sala de imprensa, uma pessoa com a
cabeça apoiada na mesa de trabalho. Eu me aproximei e vi que era a jornalista
alemã Karin Sturm, profundamente atingida com a perda de Senna. Conversamos,
tentei ser útil, ajudá-la a se recompor. Ela me passou algumas informações de
como a morte de Senna havia repercutido no autódromo. Karin era, e ainda é,
amiga da família Senna.
como
foi voltar ao Brasil ao lado do caixão de Senna
Escrevi um texto ainda da sala de imprensa do
autódromo e, por volta da meia noite, fui para o meu hotel, o Albergo Serena,
em Riolo Terme, não muito distante do circuito, do meu amigo Angelo.
Não me sentia cansado fisicamente, apesar da tensão e
das exigências do dia. Mas, se tivesse alguém com quem conversar, certamente me
faria muito bem. No hotel, como de hábito, depois das 22 horas não fica
ninguém. Você tem a chave da porta de entrada e do seu apartamento. Aquele
silêncio profundo da noite, numa área com campos ao redor, compunham um cenário
diferente do que gostaria de ter.
Tomei um banho bem quente, longo, e, em seguida,
organizei minha mala. Deixei tudo pronto. Como não havia comido nada desde
antes da largada do GP, às 13 horas, senti um pouco de fome. Fui à cozinha do
hotel e encontrei pão e queijo. Tomei leite frio. Estava satisfeito. Em
seguida, li todo o material que enviei para o jornal para, em seguida,
telefonar para a redação e pedir para inserir no texto algumas passagens que
acabei não contando no primeiro momento, na pressa de escrever e ir depois para
o autódromo.
Já eram quatro horas da manhã. Comecei a ler um livro
que estava comigo e compreendi que não iria conseguir dormir. Lá pelas cinco,
coloquei minha bagagem no carro, deixei o dinheiro do pagamento do hotel num
envelope na recepção, escrevi um texto ao Angelo e fui para o autódromo. Era
noite, ainda.
Dirigi bem devagar, queria chegar no circuito já com
luz do dia. O céu estava clareando quando cruzei o portão de entrada, aberto,
sem um cidadão por lá. Eram 6 da manhã. Fui entrando com o meu carro, passei
pelo paddock, pelo centro médico e vi a entrada da pista livre, sem obstáculos.
Repito: não cruzei com um único cidadão.
Obviamente aproveitei para, devagar, ir até a curva Tamburello,
local do acidente. Eu me senti afetado emocionalmente. Parei o carro metros
antes de onde Senna perdeu o controle da Williams. Saí do meu carro. Aquilo me
atingiu. O circuito tinha o seu leito de asfalto, cerca de uns 2 metros de
grama e outros 15 metros de cimento branco antes do muro.
Constatei, com absoluta clareza, a marca dos pneus da
Williams no chão. Sobre o cimento branco, a trilha formada pelos pneus
arrastando-se era absolutamente nítida. Até mesmo o ângulo de impacto no muro
podia ser calculado com razoável precisão. Era elevado, algo entre 35 e 40
graus, o que justificou o carro perder velocidade em tão pouco espaço.
Dados da perícia não conferem
Espantou-me o relatório da perícia técnica, algum
tempo depois, afirmar que a Williams bateu num ângulo de aproximadamente 17
graus. Ora, se fosse assim, iria desacelerando aos poucos, quase que correndo
junto ao muro, até perder velocidade. Quem sou eu para afrontar o Instituto de
Aeronáutica de Bolonha, responsável pela perícia? Mas a conclusão não bate com
o que vi no autódromo, menos de 24 horas depois do acidente.
A coluna de direção se rompeu
Técnicos concluíram que a coluna de direção da
Williams se rompeu quando Senna iniciava a curva Tamburello. Assim, as rodas
não respondiam mais ao volante e o carro seguiu reto, sem contornar a curva. A
coluna conecta o volante à caixa de direção, localizada na frente do carro.
Desta, saem duas barras de direção que se conectam com a manga de eixo, nas
rodas.
Negligência técnica
Ao abaixar a coluna de direção para dar mais espaço
para Senna pilotar, sem bater as mãos nas paredes do cockpit, a Williams mudou
a largura do cano da coluna. Uma parte tinha o diâmetro original e outra, um
menor. A ruptura da coluna se deu no ponto de solda dos dois canos de diferente
diâmetro. A justiça italiana julgou o projetista, Adrian Newey, e o diretor
técnico, Patrick Head, por imprudência de engenharia. Mas foram absolvidos.
Enquanto eu procurava entender o que tinha acontecido
na curva Tamburello, chegou um carro dos Carabinieri e outro da Sagis, empresa
que administrava o autódromo. Veja só o que aconteceu: de dentro do automóvel
da Sagis desceu um cidadão enorme, bem alto, e sem falar nada se aproximou de
mim e me deu um empurrão tão violento que cai no chão.
Não tenho histórico de brigar, mas minha primeira
reação foi voar no pescoço dele. Foram os Carabinieri que, também sem entender
a reação do indivíduo, interromperam o que seria uma luta estúpida,
provavelmente com consequências mais sérias para mim, com meu 1,75 metro. Os
policiais estavam supercalmos e até conversamos depois. Homens bem preparados
para a função, de muito bom nível.
Medo da justiça
O italiano valentão ainda me insultava, apenas por
estar naquele local. Ao lado dos policiais, lhe disse: Você está com medo de
ter problemas com a justiça por causa da falta de segurança do seu autódromo?
Duas mortes no mesmo fim de semana podem mesmo comprometer muita gente.
A situação se acalmou na sequência e os policiais
começaram a isolar o local com aquela fita amarela utilizada nos acidentes.
Nesse momento chegou o chefe de produção da Globo, Jayme Britto. Os Carabinieri
nos pediram para voltar ao paddock. Foi o que fizemos.
O destino, agora, era bem triste: o Instituto Médico
Legal de Bolonha, onde estava o corpo de Senna. Tomei consciência de que o
piloto que eu admirava estava morto. Emocionei-me enquanto percorria os 50
quilômetros que separam Ímola de Bolonha. Ah, passei no hotel e peguei a
jornalista alemã Karin, minha amiga, para irmos juntos.
Foi a primeira vez que meus olhos se encheram de
lágrimas. Enquanto dirigia para o IML de Bolonha. Estacionei o carro, algo
sempre muito desgastante nas cidades europeias, e, ao me aproximar do IML,
encontrei centenas de pessoas na porta. Ninguém podia entrar. Havia um portão
de ferro entre a avenida e uma espécie de pequeno estacionamento aberto, dentro
do edifício.
Santuário improvisado
Transformaram o portão de ferro, de uns 5 metros de
largura, em um santuário. Havia já dezenas de conjuntos de flores, mensagens,
fotos, bandeiras. Vindos de todos os cantos e das mais diferentes origens, como
fãs, empresas, consulados etc. Muitas velas acesas, também. Conheci uma senhora
que viajou de trem da sua cidade, distante mais de duas horas de Bolonha, só
para estar na porta do IML quando o corpo de Senna saísse. "Queria prestar
minha homenagem a ele. Quero aplaudi-lo quando por aqui passar", disse.
Para liberar o corpo de Senna a fim de transportá-lo
ao Brasil, o cônsul brasileiro em Milão e Celso Lemos, diretor da Senna Promoções
e depois do Instituto Ayrton Senna, precisaram de mais um dia. Aquela senhora
voltou para sua casa na segunda-feira. No dia seguinte, estava de volta. Ela
conseguiu: no fim da tarde da terça-feira, o IML liberou o corpo.
Enquanto o veículo que o transportava se dirigia ao
aeroporto de Bolonha, as pessoas iam aplaudindo sua passagem. Eu queria voltar
para o Brasil no mesmo avião. Por isso, corri para o meu carro e fui para o
aeroporto também. Lembre-se: mantive minha bagagem sempre comigo.
Um avião DC-9 da Força Aérea Italiana levou o corpo de
Senna de Bolonha para Paris, a fim de ser embarcado no voo da Varig para São
Paulo. Consegui pegar um voo da Itália para Paris. Enquanto voava, planejava
escrever os meus textos. Naquela época, não se podia usar o laptop a bordo. A
comissária me ameaçou seriamente se continuasse escrevendo. Fechei o laptop e
segui redigindo a mão no bloco de reportagem.
Os textos descreviam como foi o dia de espera da
liberação do corpo em frente ao IML, com centenas de fãs e as novas oferendas
ao santuário no portão do instituto, com as mais distintas manifestações de
carinho ao piloto. Ouvi vários personagens. A devoção ao ídolo era
impressionante.
Regressar no mesmo voo de Senna
Para conseguir embarcar no voo da Varig de Paris para
São Paulo, tudo teria de dar certo. O tempo de conexão era curto e eu chegava
num terminal diferente de onde decolaria o voo para São Paulo. E a
transferência exige bom tempo. Há um ônibus para isso. Mais: precisava reemitir
minha passagem aérea, pois aquele não era o meu voo original de regresso ao
Brasil.
E ainda tinha de encontrar um tempo para, de um
telefone público, ler os textos que escrevi no voo de Bolonha a Paris. Uma hora
e meia, aproximadamente.
Sai correndo quando a porta do avião abriu. Entrei no
ônibus do Charles de Gaulle e não demorei para chegar no terminal 1, operado
pela Varig. Ao me aproximar do check in, vi Celso Lemos e o comandante da
Varig, Reginaldo Gomes Pinto, conversando. O comandante disse ao diretor da
Senna Promoções que não havia como transportar o caixão de Senna no
compartimento dos passageiros, como lhe estava sendo solicitado.
A única possibilidade de poder atender o pedido de
Lemos era se o presidente da Varig enviasse um fax assumindo a responsabilidade
pela decisão. Não demorou muito e um funcionário da Varig confirmou o
recebimento do fax.
O caixão junto dos jornalistas
A aeronave era um MD11 que possui duas seções na
classe executiva, separadas pela área de trabalho dos comissários. A mais à
frente é menor. A outra, mais extensa, com um número maior de assentos. O
pessoal da Varig tirou os assentos da área central da executiva na porção menor
e lá colocou o caixão de Senna, com a bandeira do Brasil por cima.
Os jornalistas, na realidade, eram raros. Eu, Galvão
Bueno, Reginaldo Leme, Luis Roberto, hoje locutor da TV Globo, mas na
época da rádio Globo, Candido Garcia, que já morreu, que me lembre. Estavam
nessa pequena seção da executiva ainda Betise Assumpção, assessora do Senna,
Celso Lemos e Josef Leberer, fisioterapeuta de Senna.
Decolamos em Paris e depois pousamos em São Paulo com
as cortinas que separam as classes no avião fechadas. Raríssimos passageiros
ficaram sabendo que ao seu lado estava o caixão de Senna.
Muitas histórias
Obviamente ninguém conseguiu dormir tendo ao lado o
corpo de Senna. Alguns foram para a primeira classe. Durante boa parte do voo,
formamos um grupo com conversas que se estenderam por horas. Galvão nos contou
muitas histórias vividas com Senna. E a cada fim de história, emocionado, dava
um tapa do caixão e dizia: "Olha como nós estamos levando ele de volta
para casa agora. Acabou, acabou".
Um dos pilotos veio até o nosso grupo e comunicou que
as tripulações de outras aeronaves que sabiam que aquele era o voo em que
estava o corpo de Senna enviavam mensagens simpáticas aos brasileiros, bem como
as estações de terra. Um dos aviões emitiu sinais com o farol como forma de
cumprimento ao nosso comandante.
Vimos um flash de câmara fotográfica. Celso Lemos
correu atrás do fotógrafo e lhe pediu o filme. As câmeras digitais estavam
engatinhando, ainda. Celso Lemos me procurou para pedir ajuda, pois o fotógrafo
lhe disse que estava lá pelo Estadão. Fui conversar com ele, discretamente. Não
sabia como agir, se atender o interesse da empresa que trabalhava ou do amigo
Celso Lemos, bastante revoltado com a fotografia.
Deixei a critério do fotógrafo. Mas lhe disse que
quando chegássemos em São Paulo ele provavelmente teria uma chance de melhor
fotografar o caixão dentro do avião. E foi o que aconteceu. O jornal publicou
no dia seguinte essa foto.
Passageiro reza sobre o caixão
Outro episódio durante o voo: um passageiro empurrou a
cortina, viu o caixão e perguntou o que era aquilo. Nesse instante eu estava em
outro ponto da aeronave, na primeira classe, e não vi a cena. Disseram-lhe que
era o caixão de Senna. O passageiro era um senhor. Galvão contou-me que ele
entrou, ajoelhou apoiado no caixão, rezou e depois, em silêncio e de cabeça
baixa, regressou ao seu lugar na outra seção da executiva.
A roupa de Senna
Conversei com Celso Lemos. Eu me emocionei nessa hora.
"Comprei para o Ayrton um lindo terno de cor cinza, claro. Uma camisa azul
e uma gravata também. É assim que está vestido no caixão". Falou depois
das dificuldades burocráticas em liberar o corpo. Anos mais tarde, encontrei-me
com Celso Lemos num evento e nos lembramos daquele triste voo.
Na noite anterior, eu não havia dormido. Cheguei ao
hotel pouco depois da meia noite. Por volta das 5, saí com minha bagagem para o
circuito Enzo e Dino Ferrari. E aquela noite, a bordo do voo Paris-São Paulo,
era a segunda sem dormir. Obviamente, eu sentia o esforço. Mas o nível de
vigília era tal, a necessidade de estar atento a tudo tão elevada, para depois
redigir, que o estresse me abatia, é claro, mas não na extensão que se poderia
supor. A adrenalina é capaz de fazê-lo enfrentar um leão.
Depois de 12 horas de voo, começamos o procedimento de
pouso no aeroporto de Guarulhos. O sol começava a se apresentar naquela
quarta-feira, dia 4 de maio. Da janela do MD11 da Varig, pude ver vários
helicópteros sobrevoando o aeroporto.
No pouso, a homenagem do comandante
Como que numa reverência a quem foi Senna, o
comandante Reginaldo Gomes Pinto tocou o solo da pista com extrema delicadeza.
A baixa velocidade, nos aproximamos do terminal de passageiros. As cortinas
daquela seção da executiva permaneciam fechadas. Todos os passageiros desceram
pela porta traseira e não viram o que havia a bordo. Nós ficamos onde
estávamos. Esperaríamos os bombeiros virem retirar o caixão.
Nesse instante, depois de todos os passageiros terem
desembarcado, um casal entrou na aeronave, lá onde estávamos. Era Viviane Senna
e seu marido. A cena foi de profunda emoção para eles. Era a primeira vez que
viam Senna, mas agora morto e num caixão. A sua dor pôde ser sentida também por
nós. Ficamos, todos, igualmente emocionados.
Pouco tempo depois, deixamos a aeronave. Ao sair da
área reservada do aeroporto, empurrando o carrinho de bagagem, vi que um
exército de jornalistas buscava notícias de todas as formas, de quem quer que
saísse do voo da Varig procedente de Paris. Não vi, mas imagino que os
passageiros todos não entendiam as perguntas dos repórteres por simplesmente
não saberem que o caixão de Senna estava a bordo.
Alguns colegas me identificaram e fizeram várias
perguntas
Respondi, expliquei por alto como as coisas
funcionaram, mas minha preocupação era chegar em casa, tomar um banho, comer
algo. Além de não dormir, não havia me alimentado e, a essa altura, com o
desgaste emocional também, eu comecei a acusar o golpe.
São Paulo parou para ver o herói
No caminho entre Guarulhos e o bairro de Moema, passei
por avenidas que receberiam o caminhão de bombeiros com o corpo de Senna,
previsto para ser velado no edifício da Assembleia Legislativa, no parque do
Ibirapuera. Vi milhares de pessoas aguardando-o. A cidade se mobilizou para
receber Senna. Não havia como não se sensibilizar com aquilo.
Dez anos mais tarde, entrevistei a mãe de Senna, a
senhora Neyde, uma das conversas profissionais mais marcantes da minha vida. E
ela me disse exatamente isso: "Sentia que meu filho era uma pessoa
querida, mas não sabia que era tanto".
Amigos de novo
Alain Prost embarcou em Paris para São Paulo em outro
voo. Pouco antes de Senna morrer, os dois se reconciliaram do período de guerra
vivido na McLaren, em 1988 e 1989. Entrevistei Prost em 1994, no sábado do GP
da França, e o francês elogiou e criticou Senna.
"Eu iria parar de correr depois do GP da
Austrália do ano passado (1993)", disse Alain Prost. "Antes disso, procurei
Ayrton para uma conversa. Ele me impressionou ao me ignorar. Não queria deixar
a F1 sem ter uma longa e franca conversa com ele".
O francês, quatro vezes campeão do mundo, me falou
muitas outras coisas. "Acho que sou quem sou por causa do Ayrton, bem como
ele por minha causa. Ganhamos um campeonato cada um com o mesmo carro. Eu o
admiro como piloto. O que fazia nas voltas lançadas na classificação não era
para mim. Assumia riscos realmente elevados".
A mágoa vem da reação de Senna no pódio da prova de
despedida de Alain Prost, em Adelaide, com Senna em primeiro e o francês da
Williams em segundo. "Ayrton se recusou a me atender no paddock. E lá, no
pódio, me puxou pelo braço para subir no primeiro lugar do pódio com ele.
Fiquei louco da vida na hora. Ayrton queria que as pessoas acreditassem que ele
tomou a iniciativa de nos reconciliarmos, enquanto na verdade fui eu que o
procurei primeiro".
Isso tudo apenas cinco meses antes da tragédia de
Ímola.
"Depois do episódio de Adelaide passamos a nos
falar com regularidade pelo telefone. Tornamos-nos amigos. Discutíamos questões
da F1 e pessoais. Por essa razão, voei para o Brasil para o seu funeral, porque
eu era amigo de Senna. E o admirava".
Escrever tudo o que vi
O motorista do jornal me levou do aeroporto de
Guarulhos para casa, onde cheguei por volta das 9 horas. Tomei um superbanho, a
empregada preparou o café e descansei até o meio dia. Levantei e fui rápido
para a redação. Ao chegar, obviamente fui cercado pelos colegas que desejavam
saber tudo.
O editor do Estadão e o do JT disseram, assim mesmo:
"Livio, senta e começa a escrever, em primeira pessoa, tudo o que você
viveu de ontem para hoje. E não se preocupe com o tamanho dos textos e o número
de textos. Tudo será aproveitado com destaque. Depois, estudaremos mais
reportagens, não só sobre o ocorrido entre Paris e São Paulo".
No sábado, eu já embarquei de volta para Bolonha, a
fim de acompanhar as investigações sobre o trágico GP de San Marino no
autódromo Enzo e Dino Ferrari, onde, na próxima quinta-feira, 1º de maio de
2014, 20 anos depois, a prefeitura de Ímola organizou um superevento para
lembrar a passagem de um ídolo da humanidade, Ayrton Senna da Silva.
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Acesse também o site do Instituto Ayrton Senna no: www.senna.org.br. Veja o seu conteúdo e seu ideal... e se quiser colabore de alguma forma.
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