Publicado originalmente em "O FUTURO" em 1862.
Domínio público.
EDIÇÃO: OBRAS COMPLETAS DE MACHADO DE ASSIS - RELÍQUIAS DE CASA VELHA - 2º VOLUME
W. M. JACKSON INC. EDITÔRES - RIO DE JANEIRO, SÃO PAULO, PÔRTO ALEGRE - 1957.
Segue abaixo o conto na nova ortografia da língua portuguesa que está em vigor desde 01/01/2009.
O PAÍS DAS QUIMERAS - MACHADO DE ASSIS
Arrependera-se Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O
virtuoso romano tinha razão. Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas
vezes funestos. Os feitos marítimos dobram de valia por esta circunstância, e é também
por esta circunstância que se esquivam de navegar as almas pacatas, ou, para falar mais
decentemente, os espíritos prudentes e seguros.
Mas, para justificar o provérbio que diz: debaixo dos pés se levantam os trabalhos — a via
terrestre não é absolutamente mais segura que a via marítima, e a história dos caminhos
de ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes episódios.
Absorto nestas e noutras reflexões estava o meu amigo Tito, poeta aos vinte anos, sem
dinheiro e sem bigode, sentado à mesa carunchosa do trabalho, onde ardia
silenciosamente uma vela.
Devo proceder ao retrato físico e moral do meu amigo Tito.
Tito não é nem alto nem baixo, o que equivale a dizer que é de estatura mediana, a qual
estatura é aquela que se pode chamar francamente elegante na minha opinião.
Possuindo um semblante angélico, uns olhos meigos e profundos, o nariz descendente
legítimo e direto do de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono
do pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações de
quinze e mesmo de vinte anos.
Como as medalhas, e como todas as coisas deste mundo de compensações, Tito tem um
reverso. Oh! triste coisa que é o reverso das medalhas! Podendo ser, do colo para cima,
modelo à pintura, Tito é uma lastimosa pessoa no que toca ao resto. Pés prodigiosamente
tortos, pernas zambras, tais são os contras que a pessoa do meu amigo oferece a quem
se extasia diante dos magníficos prós da cara e da cabeça. Parece que a natureza se
dividira para dar a Tito o que tinha de melhor e o que tinha de pior, e pô-lo na miserável e
desconsoladora condição do pavão, que se enfeita e contempla radioso, mas cujo orgulho
se abate e desfalece quando olha para as pernas e para os pés.
No moral Tito apresenta o mesmo aspecto duplo do físico. Não tem vícios, mas tem
fraquezas de caráter que quebram, um tanto ou quanto, as virtudes que o enobrecem. É
bom e tem a virtude evangélica da caridade; sabe, como o divino Mestre, partir o pão da
subsistência e dar de comer ao faminto, com verdadeiro júbilo de consciência e de
coração. Não consta, além disso, que jamais fizesse mal ao mais impertinente bicho, ou
ao mais insolente homem, duas coisas idênticas, nos curtos dias da sua vida. Pelo
contrário, conta-se que a sua piedade e bons instintos o levaram uma vez a ficar quase
esmagado, procurando salvar da morte uma galga que dormia na rua, e sobre a qual ia
quase passando um carro. A galga, salva por Tito, afeiçoou-se-lhe tanto que nunca mais o
deixou; à hora em que o vemos absorto em pensamentos vagos está ela estendida sobre
a mesa a contemplá-lo grave e sisuda.
Só há que censurar em Tito as fraquezas de caráter, e deve-se crer que elas são filhas
mesmo das suas virtudes. Tito vendia outrora as produções da sua musa, não por meio
de uma permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada digno de
um filho de Apolo. As vendas que fazia eram absolutas, isto é, trocando por dinheiro os
seus versos, o poeta perdia o direito da paternidade sobre essas produções. Só tinha um
freguês; era um sujeito rico, maníaco pela fama de poeta, e que, sabendo da facilidade
com que Tito rimava, apresentou-se um dia no modesto albergue do poeta e entabulou a
negociação por estes termos:
— Meu caro, venho propor-lhe um negócio da China.
— Pode falar, respondeu Tito.
— Ouvi dizer que você fazia versos... É verdade?
Tito conteve-se a custo diante da familiaridade do tratamento, e respondeu:
— É verdade.
— Muito bem. Proponho-lhe o seguinte: compro-lhe por bom preço todos os seus versos,
não os feitos, mas os que fizer de hoje em diante, com a condição de que os hei de dar à
estampa como obra da minha lavra. Não ponho outras condições ao negócio: advirto-lhe,
porém, que prefiro as odes e as poesias de sentimento. Quer?
Quando o sujeito acabou de falar, Tito levantou-se e com um gesto mandou-o sair. O
sujeito pressentiu que, se não saísse logo, as coisas poderiam acabar mal. Preferiu tomar
o caminho da porta, dizendo entre dentes: "Há de procurar-me, deixa estar!"
O meu poeta esqueceu no dia seguinte a aventura da véspera, mas os dias passaram-se
e as necessidades urgentes apresentaram-se à porta com o olhar suplicante e as mãos
ameaçadoras. Ele não tinha recursos; depois de uma noite atribulada, lembrou-se do
sujeito, e tratou de procurá-lo; disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o
negócio; o sujeito, rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro adiantamento, sob a
condição de que o poeta lhe levaria no dia seguinte uma ode aos Polacos. Tito passou a
noite a arregimentar palavras sem idéia, tal era seu estado, e no dia seguinte levou a obra
ao freguês, que achou boa e dignou-se apertar-lhe a mão.
Tal é a face moral de Tito. A virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com os
dons de Deus; e ainda assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido quando se
achou com a corda ao pescoço.
A mesa à qual Tito estava encostado era um traste velho e de lavor antigo; herdara-a de
uma tia que lhe havia morrido fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena de ave,
algum papel, eis os instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e uma cama
completavam a sua mobília. Já falei na vela e na galga.
À hora em que Tito se engolfava em reflexões e fantasias era noite alta. A chuva caía com
violência, e os relâmpagos que de instante a instante rompiam o céu deixavam ver o
horizonte pejado de nuvens negras e túmi-das. Tito nada via, porque estava com a
cabeça encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é provável que não ouvisse,
porque se entretinha em refletir nos perigos que oferecem os diferentes modos de viajar.
Mas qual o motivo destes pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou
explicar à legitima curiosidade dos leitores. Tito, como todos os homens de vinte anos,
poetas e não poetas, sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos pretos, um porte
senhoril, uma visão, uma criatura celestial, qualquer coisa por este teor, havia influído por
tal modo no coração de Tito, que o pusera, pode-se dizer, à beira da sepultura. O amor
em Tito começou por uma febre; esteve três dias de cama, e foi curado (da febre e não do
amor) por uma velha da vizinhança, que conhecia o segredo das plantas virtuosas, e que
pôs o meu poeta de pé, com o que adquiriu mais um título à reputação de feiticeira, que
os seus milagrosos curativos lhe haviam granjeado.
Passado o período agudo da doença, ficou-lhe este resto de amor, que, apesar da calma
e da placidez, nada perde da sua intensidade. Tito estava ardentemente apaixonado, e
desde então começou a defraudar o freguês das odes, subtraindo-lhe algumas estrofes
inflamadas, que dedicava ao objeto dos seus íntimos pensamentos, tal qual como aquele
sr.d’alma, e quando ele acabou de falar disse-lhe que era melhor voltar à vida real, e
deixar musas e amores, para cuidar do alinho da própria pessoa. Não presuma o leitor
que a dama de quem lhe falo tinha a vida tão desenvolta como a língua. Era, pelo
contrário, um modelo da mais seráfica pureza e do mais perfeito recato de costumes;
recebera a educação austera de seu pai, antigo capitão de milícias, homem de incrível
boa fé, que, neste século desabusado, ainda acreditava em duas coisas: nos programas
políticos e nas cebolas do Egito.
Desenganado de uma vez nas suas pretensões, Tito não teve força de ânimo para varrer
da memória a filha do militar: e a resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe no
coração como um punhal frio e penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a lembrança, viva
sempre, como ara de Vesta, trazia-lhe as fatais palavras ao meio das suas horas mais
alegres ou menos tristes da sua vida, como aviso de que a sua satisfação não podia durar
e que a tristeza era o fundo real dos seus dias. Era assim que os egípcios mandavam pôr
um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que a vida é transitória, e que só
na sepultura existe a grande e eterna verdade.
Quando, depois de voltar a si, Tito conseguiu encadear duas idéias e tirar delas uma
conseqüência, dois projetos se lhe apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta
de pusilânime; um concluía pela tragédia, outro pela asneira; triste alternativa dos
corações não compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente deixar este
mundo; o outro, limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar ou por terra, a fim de
deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava o primeiro por achá-lo
sanguinolento e definitivo; o segundo parecia-lhe melhor, mais consentâneo com a sua
dignidade e sobretudo com os seus instintos de conservação. Mas qual o meio de mudar
de sítio? Tomaria por terra? tomaria por mar? Qualquer destes dois meios tinha seus
inconvenientes. Estava o poeta nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta
três pancadinhas. Quem seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora? Lembrouse que tinha umas encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir
resignado a muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar. Mas, ó
pasmo! mal o poeta abriu a porta, eis que uma sílfide, uma criatura celestial, vaporosa,
fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem de névoas, uma coisa entre
as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e insinuante, olhos negros e cintilantes,
cachos louros do mais leve e delicado cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas
nuas, divinas, como as tuas, ó Afrodite! eis que uma criatura assim invade o aposento do
poeta e, estendendo a mão, ordena-lhe que feche a porta e tome assento à mesa.
Tito estava assombrado. Maquinalmente voltou ao seu lugar sem tirar os olhos da visão.
Esta sentou-se defronte dele e começou a brincar com a galga que dava mostras de não
usado contentamento. Passaram-se nisto dez minutos; depois do que a peregrina singular
criatura cravando os seus olhos nos do poeta, perguntou-lhe com uma doçura de voz
nunca ouvida:
— Em que pensas, poeta? Pranteias algum amor mal parado? Sofres com a injustiça dos
homens? Dói-te a desgraça alheia, ou é a própria que te sombreia a fronte?
Esta indagação era feita de um modo tão insinuante que Tito sem inquirir o motivo de
curiosidade, respondeu imediatamente:
— Penso na injustiça de Deus.
— É contraditória a expressão; Deus é a justiça.
— Não é. Se fosse teria repartido irmãmente a ternura pelos corações e não consentiria
que um ardesse inutilmente pelo outro. O fenômeno da simpatia devia ser sempre
recíproco, de maneira que a mulher não pudesse olhar com frieza para o homem, quando
o homem levantasse olhos de amor para ela.
— Não és tu quem fala, poeta. É o teu amor-próprio ferido pela má paga do teu afeto. Mas
de que te servem as musas? Entra no santuário da poesia, engolfa-te no seio da
inspiração, esquecerás aí a dor da chaga que o mundo te abriu.
— Coitado de mim, respondeu o poeta, que tenho a poesia fria, e apagada a inspiração!
— De que precisas tu para dar vida à poesia e à inspiração?
— Preciso do que me falta... e falta-me tudo.
— Tudo? És exagerado. Tens o selo com que Deus te distinguiu dos outros homens e
isso te basta. Cismavas em deixar esta terra?
— É verdade.
— Bem; venho a propósito. Queres ir comigo?
— Para onde?
— Que importa? Queres vir?
— Quero. Assim me distrairei. Partiremos amanhã. É por mar, ou por terra?
— Nem amanhã, nem por mar, nem por terra; mas hoje, e pelo ar.
Tito levantou-se e recuou. A visão levantou-se também.
— Tens medo? perguntou ela.
— Medo, não, mas...
— Vamos. Faremos uma deliciosa viagem.
— Vamos.
Não sei se Tito esperava um balão para a viagem aérea a que o convidava a inesperada
visita; mas, o que é certo, é que os seus olhos se arregalaram prodigiosamente quando
viu abrirem-se das espáduas da visão duas longas e brancas asas que ela começou a
agitar e das quais caía uma poeira de ouro.
— Vamos, disse a visão.
Tito repetiu maquinalmente:
— Vamos!
E ela tomou-o nos braços, subiu com ele até o teto, que se rasgou, e passaram ambos,
visão e poeta. A tempestade tinha, como por encanto, cessado; estava o céu limpo,
transparente, luminoso, verdadeiramente celeste, enfim. As estrelas fulgiam com a sua
melhor luz, e um luar branco e poético caía sobre os telhados das casas e sobre as flores
e a relva dos campos.
Os dois subiram.
Durou a ascensão algum tempo. Tito não podia pensar; ia atordoado, e subia sem saber
para onde, nem a razão por quê. Sentia que o vento agitava os cabelos louros da visão, e
que eles lhe batiam docemente na face, do que resultava uma exalação celeste que
embriagava e adormecia. O ar estava puro e fresco. Tito, que se havia distraído algum
tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas, contava que, naquele subir
continuado, breve chegariam a sentir os efeitos da rarefação da atmosfera. Engano dele!
Subiam sempre, e muito, mas a atmosfera conservava-se sempre a mesma, e quanto
mais ele subia melhor respirava.
Isto passou rápido pela mente do poeta. Como disse, ele não pensava; ia subindo sem
olhar para a terra. E para que olharia para a terra? A visão não podia conduzi-lo senão ao
céu.
Em breve começou Tito a ver os planetas fronte por fronte. Era já sobre a madrugada.
Vênus, mais pálida e loura que de costume, ofuscava as estrelas com o seu clarão e com
a sua beleza. Tito teve um olhar de admiração para a deusa da manhã. Mas subia,
subiam sempre. Os planetas passavam à ilharga do poeta, como se fossem corcéis
desenfreados. Afinal penetraram em uma região inteiramente diversa das que haviam
atravessado naquela assombrosa viagem. Tito sentia expandir-se-lhe a alma na nova
atmosfera. Seria aquilo o céu? O poeta não ousava perguntar, e mudo esperava o termo
da viagem. À proporção que penetravam nessa região ia-se a alma do poeta rompendo
em júbilo; daí a algum tempo entravam em um planeta; a fada depôs o poeta e
começaram a fazer o trajeto a pé.
Caminhando, os objetos, até então vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de
coisas reais. Tito pôde ver então que se achava em uma nova terra, a todos os respeitos
estranha: o primeiro aspecto vencia ao que oferece a poética Istambul ou a poética
Nápoles. Mais entravam, porém, mais os objetos tomavam o aspecto da realidade. Assim
chegaram à grande praça onde estavam construídos os reais paços. A habitação régia
era, por assim dizer, uma reunião de todas as ordens arquitetônicas, sem excluir a
chinesa, sendo de notar que esta última fazia não mediana despesa na estrutura do
palácio.
Tito quis sair da ânsia em que estava por saber em que país acabava de entrar, e
aventurou uma pergunta à sua companheira.
— Estamos no país das Quimeras, respondeu ela.
— No país das Quimeras?
— Das Quimeras. País para onde viaja três quartas partes do gênero humano, mas que
não se acha consignado nas tábuas da ciência.
Tito contentou-se com a explicação. Mas refletiu sobre o caso. Por que motivo iria parar
ali? A que era levado? Estava nisto quando a fada o advertiu de que eram chegados à
porta do palácio. No vestíbulo havia uns vinte ou trinta soldados que fumavam em grosso
cachimbo de escuma do mar, e que se embriagavam com outros tantos padixás, na
contemplação dos novelos de fumo azul e branco que lhe saíam da boca. À entrada dos
dois houve continência militar. Subiram pela grande escadaria, e foram ter aos andares
superiores.
— Vamos falar aos soberanos, disse a companheira do poeta. Atravessaram muitas salas
e galerias. Todas as paredes, como no poema de Dinis, eram forradas de papel prateado
e lantejoulas.
Afinal penetraram na grande sala. O gênio das bagatelas, de que fala Elpino, estava
sentado em um trono de casquinha, tendo de ornamento dois pavões, um de cada lado. O
próprio soberano tinha por coifa um pavão vivo, atado pelos pés a uma espécie de
solidéu, maior que os dos nossos padres, o qual por sua vez ficava firme na cabeça por
meio de duas largas fitas amarelas, que vinham atar-se debaixo dos reais queixos. Coifa
idêntica adornava a cabeça dos gênios da corte, que correspondem aos viscondes deste
mundo e que cercavam o trono do brilhante rei. Todos aqueles pavões, de minuto a
minuto, armavam-se, apavoneavam-se, e davam os guinchos do costume.
Quando Tito entrou na grande sala pela mão da visão, houve um murmúrio entre os
fidalgos quiméricos. A visão declarou que ia apresentar um filho da terra. Seguiu-se a
cerimônia da apresentação, que era uma enfiada de cortesias, passagens e outras coisas
quiméricas, sem excluir a formalidade do beija-mão. Não se pense que Tito foi o único a
beijar a mão ao gênio soberano; todos os presentes fizeram o mesmo, porque, segundo
Tito ouviu depois, não se dá naquele país o ato mais insignificante sem que esta
formalidade seja preenchida.
Depois da cerimônia da apresentação perguntou o soberano ao poeta que tratamento
tinha na terra, para dar-se-lhe cicerone correspondente.
— Eu, disse Tito, tenho, se tanto, uma triste Mercê.
— Só isso? Pois há de ter o desprazer de ser acompanhado pelo cicerone comum. Nós
temos cá a Senhoria, a Excelência, a Grandeza, e outras mais; mas, quanto à Mercê,
essa, tendo habitado algum tempo este país, tornou-se tão pouco útil que julguei melhor
despedi-la.
A este tempo a Senhoria e a Excelência, duas criaturas empertigadas, que se haviam
aproximado do poeta, voltaram-lhe as costas, encolhendo os ombros e deitando-lhe um
olhar de través com a maior expressão de desdém e pouco caso.
Tito quis perguntar à sua companheira o motivo deste ato daquelas duas quiméricas
pessoas; mas a visão puxou-lhe pelo braço, e fez-lhe ver com um gesto que estava
desatendendo ao Gênio das Bagatelas, cujos sobrolhos se contraíram, como dizem os
poetas antigos que se contraíam os de Júpiter Tonante.
Neste momento entrou um bando de moçoilas frescas, lépidas, bonitas e louras... oh! mas
de um louro que se não conhece entre nós, os filhos da terra! Entraram elas a correr, com
a agilidade de andorinhas que voam; e depois de apertarem galhofeiramente a mão aos
gênios da corte foram ao Gênio soberano, diante de quem fizeram umas dez ou doze
mesuras.
Quem eram aquelas raparigas? O meu poeta estava de boca aberta. Indagou da sua
guia, e soube. Eram as Utopias e as Quimeras que iam da terra, onde haviam passado a
noite na companhia de alguns homens e mulheres de todas as idades e condições.
As Utopias e as Quimeras foram festejadas pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes e
bater-lhes na face. Elas alegres e risonhas receberam os carinhos reais como coisa que
lhes era devida; e depois de dez ou doze mesuras, repetição das anteriores, foram-se da
sala, não sem abraçarem ou beliscarem o meu poeta, que olhava espantado para elas
sem saber por que se tornara objeto de tanta jovialidade. O seu espanto crescia de ponto
quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito usada nos bailes de máscaras: Eu
te conheço!
Depois que saíram todas, o Gênio fez um sinal, e toda a atenção concentrou-se no
soberano, a ver o que ia sair-lhe dos lábios. A expectativa foi burlada, porque o gracioso
soberano apenas com um gesto indicou ao cicerone comum o misero hóspede que daqui
tinha ido. Seguiu-se a cerimônia da saída, que durou longos minutos, em virtude das
mesuras, cortesias e beija-mão do estilo.
Os três, o poeta, a fada condutora e o cicerone, passaram à sala da rainha. A real
senhora era uma pessoa digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e
graciosa; trajava vestido de gaze e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo,
pedras finas de todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara
trazia posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo pincel da
natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e delicados óleos.
Tito não disfarçou a impressão que lhe causava um todo assim. Voltou-se para a
companheira de viagem e perguntou como se chamava aquela deusa.
— Não a vê? respondeu a fada; não vê as trezentas raparigas que trabalham em torno
dela? Pois então? é a Moda, cercada de suas trezentas belas, caprichosas filhas.
A estas palavras Tito lembrou-se do Hissope. Não duvidava já de que estava no país das
Quimeras; mas, raciocinou ele, para que Dinis falasse de algumas destas coisas, é
preciso que cá tivesse vindo e voltasse, como está averiguado. Portanto, não devo recear
de cá ficar morando eternamente. Descansado por este lado, passou a atentar para os
trabalhos das companheiras da rainha; eram umas novas modas que se estavam
arranjando, para vir a este mundo substituir as antigas.
Houve apresentação com o cerimonial do estilo. Tito estremeceu quando pousou os
lábios na mão fina e macia da soberana; esta não reparou, porque tinha na mão esquerda
um psyché, onde se mirava de momento em momento.
Impetraram os três licença para continuar a visita do palácio e seguiram pelas galerias e
salas do alcáçar. Cada sala era ocupada por um grupo de pessoas, homens ou mulheres,
algumas vezes mulheres e homens, que se ocupavam nos diferentes misteres de que
estavam incumbidos pela lei do país, ou por ordem arbitrária do soberano. Tito percorria
essas diversas salas com o olhar espantado, estranhando o que via, aquelas ocupações,
aqueles costumes, aqueles caracteres. Em uma das salas um grupo de cem pessoas
ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa. Naturalmente este lugar é a
ucharia, pensou Tito; estão preparando alguma iguaria singular para o almoço do rei.
Indagou do cicerone se havia acertado. O cicerone respondeu:
— Não, senhor; estes homens estão ocupados em preparar massa cerebral para um certo
número de homens de todas as classes: estadistas, poetas, namorados, etc.; serve
também a mulheres. Esta massa é especialmente para aqueles que, no seu planeta,
vivem com verdadeiras disposições do nosso país, aos quais fazemos presentes deste
elemento constitutivo.
— É massa quimérica?
— Da melhor que se há visto até hoje.
— Pode ver-se?
O cicerone sorriu-se; chamou o chefe da sala, a quem pediu um pouco de massa. Este foi
com prontidão ao depósito e tirou uma porção que entregou a Tito. Mal o poeta a tomou
das mãos do chefe desfez-se a massa, como se fora composta de fumo. Tito ficou
confuso; mas o chefe, batendo-lhe no ombro:
— Vá descansado, disse; nós temos à mão matéria-prima; é da nossa própria atmosfera
que nos servimos; e a nossa atmosfera não se esgota.
Este chefe tinha uma cara insinuante, mas, como todos os quiméricos, era sujeito a
abstrações, de modo que Tito não pôde arrancar-lhe mais uma palavra, porque ele, ao
dizer as últimas, começou a olhar para o ar e a contemplar o vôo de uma mosca.
Este caso atraiu os companheiros que se chegaram a ele e mergulharam-se todos na
contemplação do alado inseto.
Os três continuaram caminho.
Mais adiante era uma sala onde muitos quiméricos, à roda de mesas, discutiam os
diferentes modos de inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos
para encher o tempo e apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos. Esses
homens tinham ares de finos e espertos. Havia ordem do soberano para não se entrar
naquela sala em horas de trabalho; um guarda estava à porta. A menor distração daquele
congresso seria considerada uma calamidade pública.
Andou o meu poeta de sala em sala, de galeria em galeria, aqui, visitando um museu, ali,
um trabalho ou um jogo; teve tempo de ver tudo, de tudo examinar, com atenção e pelo
miúdo. Ao passar pela grande galeria que dava para a praça, viu que o povo, reunido
embaixo das janelas, cercava uma forca. Era uma execução que ia ter lugar. Crime de
morte? perguntou Tito, que tinha a nossa legislação na cabeça. Não, responderam-lhe,
crime de lesa-cortesia. Era um quimérico que havia cometido o crime de não fazer a
tempo e com graça uma continência; este crime é considerado naquele país como a
maior audácia possível e imaginável. O povo quimérico contemplou a execução como se
assistisse a um espetáculo de saltimbancos, entre aplausos e gritos de prazer.
Entretanto era hora do almoço real. À mesa do gênio soberano só se sentavam o rei, a
rainha, dois ministros, um médico e a encantadora fada que havia levado o meu poeta
àquelas alturas. A fada, antes de sentar-se à mesa, implorou do rei a mercê de admitir
Tito ao almoço; a resposta foi afirmativa; Tito tomou assento. O almoço foi o mais sucinto
e rápido que é possível imaginar. Durou alguns segundos, depois do que todos se
levantaram, e abriu-se mesa para o jogo das reais pessoas; Tito foi assistir ao jogo; em
roda da sala havia cadeiras, onde estavam sentadas as Utopias e as Quimeras; às costas
dessas cadeiras empertigavam-se os fidalgos quiméricos, com os seus pavões e as suas
vestiduras de escarlate. Tito aproveitou a ocasião para saber como é que o conheciam
aquelas assanhadas raparigas. Encostou-se a uma cadeira e indagou da Utopia que se
achava nesse lugar. Esta impetrou licença, e depois das formalidades do costume,
retirou-se a uma das salas com o poeta, e aí perguntou-lhe:
— Pois deveras não sabes quem somos? Não nos conheces?
— Não as conheço, isto é, conheço-as agora, e isso dá-me verdadeiro pesar, porque
quisera tê-las conhecido há mais tempo.
— Oh! sempre poeta!
— É que deveras são de uma gentileza sem rival. Mas onde é que me viram?
— Em tua própria casa.
— Oh!
— Não te lembras? À noite, cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí,
abrindo velas ao pensamento, deixas-te ir por um mar sereno e calmo. Nessa viagem
acompanham-te algumas raparigas... somos nós, as Utopias, nós, as Quimeras.
Tito compreendeu afinal uma coisa que se lhe estava a dizer havia tanto tempo. Sorriu-se,
e cravando os seus belos e namorados olhos nos da Utopia que tinha diante de si, disse:
— Ah! sois vós, é verdade! Consoladora companhia que me distrai de todas as misérias e
pesares. É no seio de vós que eu enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem! Conforta-me
ver-vos a todas de face e embaixo de forma palpável.
— E queres saber, tornou a Utopia, quem nos leva a todas para tua companhia? Olha, vê.
O poeta voltou a cabeça e viu a peregrina visão, sua companheira de viagem.
— Ah! é ela! disse o poeta.
— É verdade. É a loura Fantasia, a companheira desvelada dos que pensam e dos que
sentem.
A Fantasia e a Utopia entrelaçaram-se as mãos e olhavam para Tito. Este, como que
enlevado, olhava para ambas. Durou isto alguns segundos; o poeta quis fazer algumas
perguntas, mas quando ia falar reparou que as duas se haviam tornado mais delgadas e
vaporosas. Articulou alguma coisa; porém, vendo que elas iam ficando cada vez mais
transparentes, e distinguindo-lhes já pouco as feições, soltou estas palavras: — Então!
que é isto? por que se desfazem assim? — Mais e mais as sombras desapareciam, o
poeta correu à sala do jogo; espetáculo idêntico o esperava; era pavoroso; todas as
figuras se desfaziam como se fossem feitas de névoa. Atônito e palpitante, Tito percorreu
algumas galerias e afinal saiu à praça; todos os objetos estavam sofrendo a mesma
transformação. Dentro de pouco Tito sentiu que lhe faltava apoio aos pés e viu que estava
solto no espaço.
Nesta situação soltou um grito de dor.
Fechou os olhos e deixou-se ir como se tivesse de encontrar por termo de viagem a
morte.
Era na verdade o mais provável. Passados alguns segundos, Tito abriu os olhos e viu que
caía perpendicularmente sobre um ponto negro que lhe parecia do tamanho de um ovo. O
corpo rasgava como um raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu, e cresceu até
fazer-se do tamanho de uma esfera. A queda do poeta tinha alguma coisa de diabólica;
ele soltava de vez em quando um gemido; o ar, batendo-lhe nos olhos, obrigava-o a
fechá-los de instante a instante. Afinal, o ponto negro que havia crescido, continuava a
crescer, até aparecer ao poeta com o aspecto da terra. É a terra! disse Tito consigo.
Creio que não haverá expressão humana para mostrar a alegria que sentiu aquela alma,
perdida no espaço, quando reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta foi a
alegria. Tito pensou, e pensou bem, que naquela velocidade quando tocasse em terra
seria para nunca mais levantar. Teve um calafrio: viu a morte diante de si, e encomendou
a alma a Deus. Assim foi, foi, ou antes, veio, veio, até que — milagre dos milagres! —
caiu sobre uma praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele infernal salto.
A primeira impressão, quando se viu em terra, foi de satisfação; depois tratou de ver em
que região do planeta se achava; podia ter caído na Sibéria ou na China; verificou que se
achava a dois passos de casa. Apressou-se o poeta e voltar aos seus pacíficos lares.
A vela estava gasta; a galga, estendida sob a mesa, tinha os olhos fitos na porta. Tito
entrou e atirou-se sobre a cama, onde adormeceu, refletindo no que lhe acabava de
acontecer.
Desde então Tito possui um olhar de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz na
cabeça miolos ou massa quimérica. Devo declarar que poucos encontra que não façam
provisão desta última espécie. Diz ele, e tenho razões para crer, que eu entro no número
das pouquíssimas exceções. Em que pese aos meus desafeiçoados, não posso retirar a
minha confiança de um homem que acaba de fazer tão pasmosa viagem, e que pôde
olhar de face o trono cintilante do rei das Bagatelas.
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Após a leitura deste conto criado por Machado de Assis, vemos que a "viagem" feita pelo ar por Tito e sua companheira ao país das quimeras parece ser um relato referente a uma projeção consciente (com base em projeção de consciência contínua) do início ao fim do evento.
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Veja: A impressão da época na edição de 1957 - O PAÍS DAS QUIMERAS - CONTO DE MACHADO DE ASSIS (Parte 2 de 2).
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